Karla Monteiro

Jornalista e escritora, publicou os livros "Karmatopia: Uma Viagem à Índia", ​"Sob Pressão: A Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro" (com Marcio Maranhão) e "Samuel Wainer: O Homem que Estava Lá​"

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Descrição de chapéu jornalismo mídia

Livro fundamental de Janet Malcolm obriga jornalistas a se olharem no espelho

'O Jornalista e o Assassino' submete a imprensa a um brutal autoexame

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"Qualquer jornalista que não seja demasiado obtuso ou cheio de si para perceber o que está acontecendo sabe que o que ele faz é moralmente indefensável."

A estocada abre o livro fundamental de Janet Malcolm (1934-2021), "O Jornalista e o Assassino", publicado no Brasil pela Companhia das Letras.

Com pouco mais de 150 páginas, a obra nos obriga —nós, os jornalistas— a olhar no espelho. Nada escapa ao escrutínio da autora: a relação de poder estabelecida com a fonte, a inatingível imparcialidade, a duvidosa isenção, a inalcançável verdade. Segundo Malcolm, o pecado é original, portanto, insolúvel.

A jornalista e escritora Janet Malcolm, autora de "O Jornalista e o Assassino" - Nina Subin/Divulgação

"Os jornalistas justificam a sua própria traição de várias maneiras, de acordo com o temperamento de cada um. Os mais pomposos falam de liberdade de expressão e do direito do público de saber; os menos talentosos falam sobre a arte; os mais decentes murmuram algo sobre ganhar a vida", escreveu ela logo nos primeiros parágrafos.

Nascida em Praga, numa família de judeus que escapou para os Estados Unidos na Segunda Guerra, Janet Malcolm começou a trabalhar na revista The New Yorker aos 29 anos. O jornalismo a que ela se dedica, portanto, não é o noticioso, do dia a dia. Sua análise, embora acerte a imprensa em cheio, mira o jornalismo mais pretensioso, elaborado, que beira, ou quer beirar, a literatura.

"A verdade existe?" A pergunta percorre as páginas de "O Jornalista e o Assassino". A autora não acredita nela, na verdade. Para ela, somente o escritor de ficção é fiel, pois seu compromisso é com a imaginação. Já o autor de não ficção habita o reino das versões —e faz qualquer negócio para que a sua própria versão prevaleça.

No posfácio da edição brasileira, o jornalista Otavio Frias Filho (1957-2018), que esteve à frente da Redação da Folha por 34 anos, bem ressaltou o que salta das páginas: a obsessão de Malcolm em mostrar a dificuldade de se chegar à verdade sobre qualquer coisa.

"Sua crítica, embora se concentre no jornalismo, é radical a ponto de alcançar todas as formas de narrativa, igualmente inconfiáveis, com a exceção, como vimos, das estritamente ficcionais", comentou Frias Filho.

A propósito, certa feita, li numa entrevista do escritor israelense Amós Oz ideia parecida, de que apenas os romancistas alcançam a bem aventurança. Ao comentar reportagens que tratam do "caldeirão" do Oriente Médio, ele afirmou: "Às vezes o pior inimigo da verdade são os fatos".

O meio e o fim

Em "O Jornalista e o Assassino", Malcolm mergulha num intrincado caso. No verão de 1984, o médico Jeffrey MacDonald, condenado por três assassinatos, moveu um ruidoso processo contra o jornalista Joe McGinniss, autor de "Fatal Vision" (Visão Fatal), um livro-reportagem sobre a sua história.

A premissa do processo era surpreendente: a traição. Quatorze anos antes, em 1970, MacDonald, então médico do Exército, fora acusado de matar a mulher grávida e as duas filhas pequenas, na Carolina do Norte. No primeiro julgamento, saíra livre de um Tribunal Militar, alegando que a casa da família havia sido invadida por três delinquentes.

Anos mais tarde, enfrentando um júri popular, do qual sairia condenado a prisão perpétua, recebeu McGinniss para uma entrevista. O jornalista era famoso, autor do best-seller "The Selling of The President" (A promoção do presidente), que revelou as inéditas técnicas usadas por uma agência de publicidade para transformar Richard Nixon num candidato menos pavoroso do que ele realmente era.

Foi amizade à primeira vista. McGinniss saiu do encontro com a proposta de escrever um livro, com livre acesso à defesa e ao réu. Em "The Selling of The President", por sinal, ele também tivera entrada franca nos bastidores da campanha de Nixon. No fim das contas, era escritor de um livro só. Suas outras cinco obras haviam fracassado.

Daí em diante, com um contrato que previa parte dos adiantamentos e ganhos com o livro para custear a defesa, MacDonald e McGinniss estabeleceram uma relação íntima, confessional, que se estenderia por quatro anos. Entre as visitas ao presídio, trocavam cartas e fitas.

A primeira missiva daria o tom de toda a extensa correspondência. "Não poderia haver um pesadelo pior que aquele que você está atravessando agora —mas isto é apenas uma fase. Completos estranhos não precisam de mais de cinco minutos para ver que você não teve um julgamento justo", escreveu McGinniss.

O veredicto de Malcolm

Na primavera de 1987, Janet Malcolm entrou no assunto, procurada pelo advogado de McGinniss, em nome da liberdade de imprensa e de expressão. Em resumo, queria sua solidariedade num processo que poderia abrir um precedente segundo o qual um repórter ou escritor ficaria legalmente obrigado a revelar o seu estado de espírito em relação ao entrevistado.

MacDonald estava processando McGinniss não pelo conteúdo do livro publicado, mas pela traição cometida nos bastidores. Ao longo dos quatro anos de simbiose, o jornalista o fizera acreditar que confiava na sua inocência. Ao escrever "Fatal Vision", traçou o perfil de um assassino psicopata.

Em campo, Janet Malcolm exumou todas as versões. Sua capacidade de observar, descrever, sintetizar, conectar, arrematar é impressionante, magistral. O texto é veloz, daqueles que prende o leitor pelo pulmão.

Ao esmiuçar o caso MacDonald-McGinniss, ela, como apontou Frias Filho, "submete o jornalismo a um brutal autoexame em seus objetivos, métodos e valores".

"Existem uma infinidade de maneiras pelas quais os jornalistas enfrentam o impasse moral que é tema deste livro. Os mais sensatos sabem que o melhor que podem fazer —e a maioria dos profissionais evita com facilidade a hipocrisia grosseira e gratuita do caso MacDonald-McGiniss— ainda não é o bastante. Os não tão sensatos, como é de hábito, preferem acreditar que não existe nenhum problema", concluiu Malcolm no posfácio da edição americana.

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