Karla Monteiro

Jornalista e escritora, publicou os livros "Karmatopia: Uma Viagem à Índia", ​"Sob Pressão: A Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro" (com Marcio Maranhão) e "Samuel Wainer: O Homem que Estava Lá​"

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Karla Monteiro

Natalia Ginzburg aponta trilha da delicadeza em meio às trevas do obscurantismo

Livro autobiográfico conta alegrias e tragédias de uma família durante ascensão do nazifascismo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

"Lá em Teófilo Otoni tem muito melhor." Meu pai dizia isso toda vez que alguém lhe apresentava uma novidade. Quando via um velhinho na rua, comentava: "Ah lá, vivendo anos dos outros". Se era convidado para almoçar, ia "filar a boia". Há muito tempo não pensava tanto nele, e nas suas infinitas tiradas repetidas, como pensei lendo o "Léxico Familiar", de Natalia Ginzburg.

Como se eu também pudesse transformar as alegrias e tragédias da minha família em obra-prima. Publicado em 1963, o livro, um relato autobiográfico que "deve ser lido como um romance", segundo a autora, parte da intimidade da família Levi, sobrenome de nascimento de Natalia, para nos falar de um tempo sombrio, quando a Europa ouvia os uivos do nazifascismo e o galope da guerra.

A originalidade está na simplicidade, na forma despretensiosa e desprovida de idealização com que a autora vai juntando memórias, frases, palavras, gestos, comportamentos dos pais e irmãos para compor um cenário que nos planta na Itália de Mussolini. Talvez seja a simplicidade, aliás, a deixar a impressão de que, afinal de contas, toda família tem um léxico. E dá um romance.

idosa branca diante de parede em fotografia PB
A escritora italiana Natalia Ginzburg em retrato feito em Roma em 1989, quando ela tinha 73 anos - Francesco Gattoni/Divulgação

Os Levi

"Léxico Familiar" é a história de uma família judia de Turim. O pai é um cientista rabugento, antifascista desiludido, disposto a demolir tudo e todos, com frases de efeito. A mãe, uma otimista de nascença. Natalia é a caçula de cinco irmãos. Do ponto de vista da mais nova, vai vendo a vida passar, colhendo as sutilezas que os une.

"Uma dessas frases ou palavras faria com que nós, irmão, reconhecêssemos uns aos outros na escuridão de uma gruta, entre milhões de pessoas", disse, ao explicar o projeto. "Essas frases são o nosso latim, o vocabulário de nossos tempos idos é como os hieróglifos dos egípcios ou dos assírio-babilônicos, o testemunho de um núcleo vital que deixou de existir, mas que sobrevive em seus textos, salvos da fúria das águas e da corrupção do tempo."

O tempo adverso que lhe coube viver é o pano de fundo. Natalia não está interessada em fazer um registro histórico da tumultuosa primeira metade do século 20. Está interessada nas pessoas —e em como elas insistem em existir mesmo quando tudo ao redor lhes diz que não vale a pena.

Ao longo da narrativa, vamos acompanhar, no passo da escalada do nazifascismo, o dia a dia dos Levi, com cenas cotidianas que fazem rir e chorar, que nos levam para a cozinha da animada casa. Enquanto casamentos acontecem, filhos nascem, os irmãos se engajam na resistência. Um deles protagoniza uma fuga espetacular para a França. O pai é preso. A guerra chega à Itália.

"Nós achávamos que a guerra iria virar e revirar imediatamente a vida de todos. Durante anos, ao contrário, muita gente permaneceu sem ser incomodada em sua casa, continuando a fazer o que sempre fizera", contou, num dos raros momentos em que descreve o conflito.

"De repente, quando cada um já achava que no fundo se livrara por pouco e não haveria nenhum transtorno, explodiram bombas e minas por toda parte e as casas desabaram, as ruas se encheram de ruína e de fugitivos. (...) Na Itália a guerra foi assim."

Em meio ao caos, Natália se casa com Leone Ginzburg, que anos antes fundara com o escritor Cesare Pavese uma pequena editora. Com ele, tem dois filhos. Marcado pelo regime de Mussolini, o marido entra e saia da cadeia, até morrer na ala alemã dos cárceres de Regina Coeli, em Roma, durante a ocupação nazista.

Ao terminar "Léxico Familiar", o meu sentimento é de profunda gratidão por ter lido este livro, neste momento em que o Brasil tem o seu Mussolini. E o mundo parece estar, de novo, atravessando as trevas do obscurantismo. Obrigada, Natalia, por me apontar a trilha da delicadeza.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.