Karla Monteiro

Jornalista e escritora, publicou os livros "Karmatopia: Uma Viagem à Índia", ​"Sob Pressão: A Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro" (com Marcio Maranhão) e "Samuel Wainer: O Homem que Estava Lá​"

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Jornalismo se furta a expor as vísceras imundas da família Bolsonaro

Ao ignorar os 51 imóveis comprados com dinheiro vivo, a Globo repete o erro de 1964, desta vez por omissão

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Daqui a meio século teremos editorial do jornal O Globo pedindo desculpas, desta vez pela omissão? O William Bonner do futuro o lerá no Jornal Nacional, com a voz solene de quem está fazendo história? Em 31 de agosto de 2013, todo o mundo há de lembrar, o diário de Roberto Marinho, tão entusiasta do golpe militar, reconhecera: "Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro".

O mea-culpa, aliás, saíra pela metade, conforme nos conta o jornalista Eugênio Bucci no livro "Roberto Marinho: um Jornalista e Seu Boneco Imaginário", publicado pela Companhia das Letras. Segundo o comiserado editorial, O Globo seguira a maioria, já que toda a imprensa vendia o peixe da redenção democrática pelos militares. Na obra de Bucci, documentos comprovam que esta é só uma meia verdade.

Jair Bolsonaro antes de motociata no 7 de Setembro, no Rio de Janeiro - Tércio Teixeira/Folhapress

Antes de voltar ao passado, vamos à omissão do presente. Há mais de duas semanas, esperamos. Todas as noites, sentados defronte da TV. Com 24 horas de atraso, um dia e uma noite depois do grande furo do UOL, verdade seja dita, o JN se dignara a colocar no ar uma matéria xoxa. Depois disso, necas. No meu tempo, 51 imóveis comprados com bufunfa pela família do presidente da República —e candidato à reeleição— seria notícia, com suítes diárias e Bonner chamando o assunto na escalada do jornal.

O impecável trabalho de Juliana Dal Piva e Thiago Herdy, por sinal, não ganhara manchetes espetaculares, desdobramentos reveladores, como o assunto merecia, em nenhum lado. Salvo incansáveis colunistas, o escândalo vem sendo tratado com modéstia na grande imprensa.

Ironicamente o JN está apresentando uma bela série de reportagens sobre a Constituição. A única forma de defender a Carta de 1988 seria, caros, expor as vísceras imundas da família Bolsonaro.

"Gente frouxa!", lembrando o indignado artigo de Nuno Ramos, às vésperas do segundo turno das eleições de 2018, publicado nesta Folha. Fôssemos atualizar o título do texto para este absurdo 2022 seria: gente broxa. Seja em nome de uma suposta isenção jornalística, do equilíbrio na cobertura das eleições ou de outras platitudes, o fato é: o jornalismo profissional está se furtando a pegar pelo chifre a defesa da democracia.

Ainda dá tempo: cadê os editoriais de capa? Cadê o duto do JN jorrando dinheiro? Cadê o Fantástico? Cadê a reportagem? Cadê o jornalismo?

Sociedade do espetáculo

O passado é a prova de que o jornalismo pode fazer mesmo a diferença. Para o bem ou para o mal. Um dos pontos altos do perfil biográfico de Roberto Marinho, traçado com mão firme por Eugênio Bucci, encontra-se nas longas páginas que o situam nos fatos e versões da ditadura.

Até à noite de 1º de abril, quando João Goulart deixara Brasília rumo à queda, O Globo realmente não estava sozinho no apoio aos militares, conforme esclarece o editorial publicado 50 anos depois. Em uníssono, a imprensa, com a honrosa exceção da Última Hora de Samuel Wainer, vendia o peixe da redentora revolução para salvar a democracia.

Logo que a ditadura se implantou e começaram a pipocar as denúncias de tortura nos porões dos quartéis, porém, os grandes jornais iniciaram o desembarque. O finado Correio da Manhã, embora Bucci não o ressalte, seria o primeiro, com um corajoso texto de Heitor Cony, denunciando a barbárie que se iniciava.

Roberto Marinho tinha outros planos, ainda segundo a potente obra. Viu no regime a mão amiga para consolidar a nascente TV Globo, inaugurada em 25 de abril de 1965, um ano depois da quartelada. O jogo de interesses era complexo. Por um lado, a Globo, para decolar, precisava pegar carona nas inovações tecnológicas promovidas pela Embratel.

Por outro, os militares estavam em busca da parceria perfeita para construir uma identidade nacional. "Se ficassem só na base da leitura de ordens do dia para tropas perfiladas aos pés das bandeiras hasteadas, os militares não teriam ido longe", escreveu Bucci. "Roberto Marinho se deu conta disso antes dos concorrentes. Foi por aí que ele começou a escalar a montanha."

"A comunicação com o povo passava por criar uma identidade nacional unificada, que valesse tanto para os gaúchos como para os manauaras", explicou o autor. "Roberto Marinho sempre disse, e com razão, que nunca obteve outorgas de novas frequências dos militares."

Na verdade, os quartéis franquearam-lhe a tranquilidade para crescer sem limites. "Nunca patrocinaram nenhuma legislação antitruste no setor de televisão e rádio, nunca barraram a propriedade cruzada de meios de comunicação."

Com isso, ele podia ser dono, em uma praça crucial como o Rio de Janeiro, do maior jornal impresso, do maior grupo de rádios e do maior canal de televisão aberta. Em troca, a Globo oferecia o espetáculo: "Na Copa do Mundo de 1970, quando a tortura grassava e as tropas de repressão política assassinavam gente indefesa e sumiam com os corpos, a televisão ajudou o ditador de turno, Emílio Garrastazu Médici, a ficar bem no vídeo, enquanto o escrete canarinho conquistava a taça Jules Rimet, no México".

Entre os achados de Bucci, está um levantamento inédito realizado por José Elias Romão, em sua tese de doutorado na UnB. No trabalho, o pesquisador exumara memorandos e despachos que traçam uma "radiografia hiper-realista da cumplicidade da Globo com o regime".

"Reconheço que o Sr. Roberto Marinho tem dado permanente apoio ao governo. No entanto, creio que não se deve permitir a ampliação de sua rede devido ao perigo de vê-la atingir mais de 80% de índice nacional de audiência, o que representa virtual controle da opinião pública", atestou para a posteridade o ministro das Comunicações, Euclides de Oliveira, em um despacho de 14 de março de 1978.

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