Karla Monteiro

Jornalista e escritora, publicou os livros "Karmatopia: Uma Viagem à Índia", ​"Sob Pressão: A Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro" (com Marcio Maranhão) e "Samuel Wainer: O Homem que Estava Lá​"

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Livro conta epopeia quixotesca de Lula na eleição de 89

Ricardo Kotscho narra 1ª campanha presidencial do petista, que teve Rede Povo, paródia da Globo, e mojitos com Fidel

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O clima era de final de primeiro jogo da Copa do Mundo. Pelo menos, na minha bolha.

Qual será o papel do MST no seu governo? A pergunta de Renata Vasconcellos a Lula, na sabatina do Jornal Nacional, arrancou memes da torcida, como o próprio candidato do PT definiu a militância. A questão soou tão datada quanto o João Pedro Stédile avermelhado, praticamente com chifres, na capa da Veja, no fim dos anos 1990. Acho que fora 1998, eu trabalhava na revista. Lula, claro, matou no peito.

Luiz Inácio Lula da Silva é entrevistado por William Bonner e Renata Vasconcellos no Jornal Nacional - Marcos Serra Lima - 25.ago.22/G1

"Chorei vendo o Lula no JN. Mais do que quando votei nele em 2002. Tanto da nossa história", tuitou Caetano Veloso: "Racionalmente falando, meu candidato é Ciro. Mas Lula arrebata. Sou um brasileiro típico".

Falando em nossa história, fui reler, no dia seguinte à entrevista, as memórias de Ricardo Kotscho: "Do Golpe ao Planalto", lançadas pela Companhia das Letras em 2006. Passando as páginas, cheguei ao capítulo da eleição presidencial de 1989, a primeira eleição direta desde que os ídolos de Bolsonaro mergulharam o país nas trevas.

A propósito, o ponto alto de Lula no JN, na minha opinião, fora a defesa da política como exercício de cidadania. Demonizando a política chegamos ao arruaceiro.

Curioso voltar ao começo, àquele jovem Lula, que, desde então, vem protagonizando a política nacional. Talvez só Getúlio Vargas se compare ao petista em popularidade —e longevidade sob os holofotes. Duas Fênix, que quando se pensa que morreu, renasce.

Em 1989, Kotscho era um jornalista já experiente, com passagem pelas principais Redações do país. Por esta Folha, havia sido o carrapato das Diretas Já, cobrindo de cima dos palanques a avalanche cívica pela redemocratização.

"Ricardinho, te prepara. Em janeiro começo minha campanha para presidente, e você vai trabalhar comigo, vai ser meu assessor de imprensa", disse Lula a Kotscho num cenário inusitado, um quarto de hotel do Sírio-Libanês, onde se recuperava de uma cirurgia de apendicite.

A marcha

A sede nacional do PT funcionava num velho sobrado da rua Onze de Junho, na Vila Clementino. Kotscho se viu alojado num cubículo, com um ramal de telefone, um aparelho de fax e um único computador. A equipe toda contava-se nos dedos das mãos. Além dele, Wladimir Pomar, José Dirceu, Francisco Weffort, Plínio de Arruda Sampaio, José Genoíno, Benedita da Silva, Hamilton Pereira, Oswaldo Vargas e Wander Bueno.

"Em compensação a sala dava para uma bucólica varanda de onde se podia apanhar goiaba no pé".

Segundo Kotscho, Lula estava animado. Nas eleições municipais, o PT fizera bonito, inclusive elegendo Luiza Erundina prefeita de São Paulo. Até então, o líder nas pesquisas comia no mesmo pasto do Partido dos Trabalhadores: Leonel Brizola, candidato dos trabalhistas. Mais ao centro, outro nome relevante: Mário Covas, pelo PSDB. À direita, o caricato Paulo Salim Maluf. A terceira via, Fernando Collor, ainda estava sendo chocada.

Conforme as contas de Wladimir Pomar, a campanha precisava de US$ 6.000 para começar. O primeiro cheque veio do Rio de Janeiro, direto para as mãos de Lula, assinado por Maria Amélia Buarque de Holanda, a viúva de Sérgio Buarque de Holanda —e mãe do Chico. No bilhete a recomendação para esperar até 20 de dezembro para depositar. Era o dia que dona Maria Amélia receberia o décimo terceiro salário.

"Antes mesmo da abertura da conta Lula 89-PT, no Banco do Brasil, dona Maria Amélia mandou entregar sua contribuição".

Menas, companheiro

A graça do livro de Kotscho está nas historietas que iam entremeando a quixotesca epopeia. Conforme o dinheiro caia, o PT publicava o saldo da conta. A ideia de Kotscho para baratear os custos não vingou: refazer de ônibus o trajeto de Garanhuns a Vicente de Carvalho, distrito do Guarujá, que havia sido percorrido pela família Silva num pau de arara, em dezembro de 1952.

A primeira entrevista que o assessor de imprensa acompanhou o candidato imprime o tom da relação que se estabeleceria nos longos meses por vir. Na porta do Sindicato dos Metalúrgicos, em São Bernardo do Campo, Lula gravava com a TV Bandeirantes, quando Kotscho interrompeu-o bruscamente.

"Chamei-o de lado e disse que a palavra menas não existia. Ele teimou que existia — e assim seria nossa relação ao longo da campanha, mais divergindo do que concordando."

Noutra ocasião, pouco antes do fim de 1988, Lula deu o troco. De madrugada, tocou o telefone de Kotscho: "Ricardinho, o Chico Mendes morreu. Precisamos ir ao velório dele, lá no Acre". Como Chico Mendes ainda era ignorado pela imprensa brasileira, o jornalista resmungou: "Mas Lula, se cada vez que morrer um líder sindical você for ao enterro, não tem campanha". Ao que este respondeu: "Larga mão de ser burro". No dia seguinte, a morte de Chico Mendes seria manchete do New York Times.

Em janeiro de 1989, como era praxe nas campanhas naquela época, a trupe iniciou uma turnê internacional, passando por cinco países da América Latina, entre estes Cuba. Logo na primeira noite em Havana, já quase meia-noite, Fidel Castro apareceu de surpresa na Casa de Protocolo, onde hospedava os visitantes. Muitos mojitos depois, já eram íntimos do comandante.

Na Nicarágua, então governada por uma junta de sandinistas, José Genoíno foi tomado de uma questão, que dividiu com Lula na mesa do jantar: "Chefe, precisamos repensar essa coisa de socialismo. Pelo jeito, antes de chegarmos ao socialismo, será preciso criar o capitalismo, para termos o que dividir".

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante comício na campanha presidencial de 1989, em São Paulo - Jorge Araújo - 17.set.89/Folhapress

As semanas iam e vinham —e a campanha foi ganhando estrutura, conforme Lula crescia nas pesquisas, encostando em Brizola. Durante uma viagem ao Acre, o petista viu pela primeira vez Fernando Collor falando como candidato. "Com este cara vamos ter problema, vamos ter trabalho", disse. De acordo com Kotscho: "A dupla que estava na frente, chamada de Brizula, aterrorizava as elites".

Quando começou o horário eleitoral no rádio e na televisão, o PT brilhou, com a Rede Povo, uma paródia da Rede Globo, garantindo Lula no segundo turno. Misturando jornalismo, propaganda e esquetes de humor, criou-se um círculo virtuoso, que se refletia nos comícios lotados Brasil afora. "Era tanta gente que comecei a pensar seriamente que poderíamos ganhar."

Como se sabe, ao fim, não ganhou. Mas aí são outras histórias, muito bem-contadas por Kotscho: o impacto da entrevista com Lurian, a filha que ninguém conhecia. A tentativa de se vincular o PT ao sequestro do empresário Abílio Diniz. O desempenho pífio de Lula no último debate —e a edição do mesmo pela Rede Globo para agigantar ainda mais Collor.

"Em janeiro, eu já estava de volta ao Jornal do Brasil. [...] Além do susto de não encontrar máquinas de escrever, substituídas por computadores, senti que algo havia mudado na minha relação com o jornalismo".

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