Katia Rubio

Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de "Atletas Olímpicos Brasileiros"

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Katia Rubio

Recusa de Calgary mostra que é hora de discutir os Jogos Olímpicos

Embora ainda atraente, Olimpíada começa a levantar suspeita sobre sustentabilidade

Há alguns anos afirmo que o modelo de Jogos Olímpicos que presenciamos ao longo das últimas décadas se esgotaria. E o Rio de Janeiro provou isso.

Apesar de não ter bola de cristal, sou uma pesquisadora dos estudos olímpicos. Isso quer dizer que observo de pequenos abalos às grandes rupturas que desencadeiam mudanças em uma estrutura secular pouco afeita a novidades.

O agigantamento dos Jogos Olímpicos foi pouco a pouco anunciando sua insustentabilidade. Junto com a complexidade da organização objetiva havia que se cumprir uma agenda oculta de interesses comerciais e políticos que envolviam, inclusive, a soberania nacional do anfitrião.

Cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos de PyeongChang, em 2018
Cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos de PyeongChang, em 2018 - Wang Haofei/Xinhua

No afã de sediar o evento com maior valor simbólico do planeta, muitos países e governantes não pouparam esforços para essa conquista. Como nos casamentos de antigamente, elogios e promessas eram feitos à moçoila casadoira. A oferta do dote era também um indicador do noivo potencial. Não vinha ao caso se havia amor entre eles. Afinal, isso é coisa de romântico!

E como em "A História de Lily Braun", de Chico Buarque, do flerte à realidade do sim no altar, a consumação da relação leva ao lamento de "nunca mais romance, nunca mais cinema, nunca mais drink no dancing..." Entretanto, uma relação estável não é feita somente de promessas e presentes. Com o passar do tempo, relações se fortalecem e duram ou terminam de maneira litigiosa.

Na metáfora olímpica, isso pode ser visto nos casos de Atenas e Rio de Janeiro. O fim das bodas foi seguido por crise econômica e política que colocou em xeque todo o sistema social do país. Não quero dizer que os Jogos Olímpicos tenham quebrado a Grécia ou o Brasil, mas certamente colaboraram para que arranhões se transformassem em feridas profundas que quase levam o enfermo a óbito.

Imposições, soberba, desmesura são algumas das palavras mais encontradas nos textos que tratam do tema. O fato é que, com o passar do tempo, o discurso de paz e congraçamento universais embutidos na realização dos Jogos Olímpicos foi substituído por demandas e imposições sem limites. O colapso iminente desse sistema levou alguns dirigentes perspicazes a agir. E a Agenda 20+20 mostra isso depois de experiências desastrosas.

O sinal para essa ação foi dado quando importantes cidades começaram a se manifestar contrariamente à realização dos Jogos. Em 2009, quando da escolha do Rio de Janeiro, a população da cidade de Chicago demonstrava grande insatisfação com a postulação. Para felicidade de muitos, Chicago caiu fora logo no princípio.

Em 2014, foi a vez de Oslo retirar a candidatura aos Jogos de Inverno de 2022, seguindo o mesmo caminho de Estocolmo, Lviv e Cracóvia.

Embora ainda atraente, a noiva olímpica parece começar a levantar suspeitas sobre sua sustentabilidade, porque as recusas a esse casamento parecem não cessar. Roma e Hamburgo saíram do páreo aos Jogos de Verão de 2024. Innsbruck retirou sua candidatura aos Jogos de Inverno de 2026. Estocolmo parece caminhar na mesma direção.

A escolha de Paris e Los Angeles para os Jogos de 2024 e 2028 foi uma forma de o movimento olímpico ganhar tempo para pôr ordem na casa.

Não é de surpreender que Calgary também diga não. Vale lembrar que o Canadá sediou três edições de Jogos Pan-americanos, duas Olimpíadas de inverno e uma de verão. Essa longa relação afetiva com a competição olímpica parece levar a sociedade a discutir a relação. Vale lembrar que o prejuízo causado pelos Jogos Olímpicos de Montréal gerou uma dívida que a população de Québec teve que pagar por mais de uma década. Essa memória parece não se apagar.

Aos poucos, a ordem dos fatores volta ao seu devido lugar. A sociedade organizada mundo afora tem enviado um recado claro. Cidades e países que cedem seu precioso espaço, construído às custas de um esforço político e econômico, passam a reivindicar respeito ao seu uso. Esperam ter como retorno algo mais do que magia e encantamento. Não se pode continuar a pagar festas de casamento com os filhos já crescidos.

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