Katia Rubio

Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de "Atletas Olímpicos Brasileiros"

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Katia Rubio

Há uma grande diferença entre ser atleta e ser máquina

Que o esporte, como outras atividades, espere pelo tempo do retorno seguro à produção

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Os tempos atuais sugerem reflexões que põem o ser humano em seu devido lugar. Obviamente, não falo de humanos quaisquer. Refiro-me a humanos que exercem a sua humanidade fazendo uso da razão, da emoção, do afeto, do respeito e da empatia, palavra tão em uso para quem, de fato, se coloca no lugar de outra pessoa para emitir sugestões ou mesmo decretos. Ou seja, não desejo nada a alguém que não possa ser desejado por mim mesma.

Nesse momento de poucos horizontes o que mais desejo para mim, e, portanto, para os outros, é poder viver. Isso implica todas as condições do exercício da humanidade, descritas acima, que passam pelas atitudes que ponham a mim e a todos os parentes, amigos, conhecidos próximos e distantes e mesmo a quem não conheço, em segurança diante da pandemia que nos cerca de forma concreta e abstrata.

Estádio do Morumbi sem público para São Paulo e Santos, o último clássico realizado no estado antes da paralisação do futebol
Estádio do Morumbi sem público para São Paulo e Santos, o último clássico realizado no estado antes da paralisação do futebol - Eduardo Knapp-14.mar.20/Folhapress

Está bem difícil viver, é fato. A perda de referência no fim disso tudo, as informações falsas que nos atordoam incessantemente, a falta de liderança institucional, as tensões dentro dos lares pela perda de renda e o necessário distanciamento social levam até os mais fortes a vacilar. Se há 60 dias entrávamos em quarentena com a perspectiva de sair dela em poucas semanas, o que temos agora é apenas incerteza. Já não sabemos quando acabará, tampouco se acabará.

Já não podemos mais nos comunicar com a face, encoberta por uma máscara. Que ironia! Nós que nos tornamos peritos em disfarces para sobreviver. Entretanto, atrás dela está nossa boca, apenas encoberta, mas não amordaçada. Resta-nos então a voz e os olhos que tudo veem e também comunicam, não só como a janela da alma, mas como um farol a iluminar caminhos dos quase cegos, mas que ainda caminham buscando ouvir pelos orifícios que as máscaras não encobrem. Ou seja, com a capacidade que temos de adaptação, isso é um indício de que sobreviveremos.

É sempre importante lembrar que as coisas não iam bem antes do isolamento, mas o vírus e suas decorrências caíram como uma luva nas mãos daqueles que desejavam transformar um continente numa ilha.

O que hoje acontece no Brasil já não era novidade para parte do mundo que sofria com as consequências de uma doença ainda sem vacina. Mesmo assim, negou-se sua transmissão. Negou-se a verdade sobre a contaminação. Negam-se agora os óbitos. A pressão produtiva é uma fina cortina que encobre uma ética própria da produção: como viveremos sem a mais-valia? Enquanto isso, pouco importa a vida de quem produz o tão desejado lucro.

E como o esporte é um fenômeno que caminha de mãos dadas com o social, lá também se vê a atitude negacionista da esfera maior. A pressão produtiva entra em campo para ajudar a encobrir outras tantas mazelas anteriores à Covid-19.

Clubes, times e meios de comunicação reclamam da falta de jogos e da renda derivada deles. Como se vivessem em um mundo paralelo, ou negacionista, pensam em pressionar atletas para que voltem aos treinos e jogos em busca dos dividendos que só um jogo ao vivo, e sem cartas marcadas, pode proporcionar. Tratam atletas como máquinas, com nervos de aço e sem sangue nas veias, como já cantou Lupicínio Rodrigues.

Pensam que basta um pano com detergente e tudo estará limpo e esterilizado para o próximo uso. Negam que o jogo depende também de uma audiência física que mobiliza a ação esportiva para além de um enfrentamento que leva a qualquer resultado possível.

Que haja mais respeito pela vida. E que o esporte, como outras atividades produtivas, espere pelo tempo do retorno seguro à produção.

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