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A traição à democracia e suas justificativas legais

No aniversário do 1º golpe de Estado da Argentina moderna, é necessário recordar como foi fácil justificar a ilegalidade

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Federico Finchelstein

Professor de história na New School, em Nova York, e doutor pela Universidade Cornell. É autor de obras sobre fascismo, populismo, o Holocausto e ditaduras

Nestes dias de um novo aniversário do primeiro golpe de Estado na história da Argentina moderna, é necessário recordar como foi fácil justificar em termos legais a mais absoluta ilegalidade. Quando o General José Félix Uriburu deu seu golpe inspirado na experiência fascista em 6 de setembro de 1930, ele só teve que recorrer ao seu poder de fato para envernizar sua ditadura com um marco legal.

Exclusividade zero nesta destruição da política constitucional argentina mediante justificações legais. Na América Latina, houve vários líderes políticos e funcionários que traíram as constituições e o governo democrático de seus países ao propiciar e participar de golpes de Estado.

Este também é o caso mais recente dos Estados Unidos, com a tentativa trumpista de auto-golpe em 6 de janeiro deste ano. Mas uma diferença com o passado golpista latino-americano é que nos Estados Unidos, as Forças Armadas e os outros poderes não apoiaram o golpe. Tampouco o fez a maioria da população.

Na Argentina não aconteceu o mesmo em 1930. Os políticos conservadores que haviam perdido as eleições presidenciais de 1928 logo apoiaram o golpe do general Uriburu, que queria mudar permanentemente a nação de uma democracia para uma nova república fascista corporativista e ditatorial. Analisemos como se “legalizou” esse roubo da democracia.

Fila em local de votação em Buenos Aires durante primárias legislativas na Argentina
Fila em local de votação em Buenos Aires durante primárias legislativas na Argentina - Agustin Marcarian-12.set.2021/Reuters

A Suprema Corte, dias depois da posse de Uriburu, reconheceu oficialmente a situação de fato e legitimou o golpe por motivos extra-constitucionais: a estabilidade e a sobrevivência da república. Nossos juízes priorizaram a ordem social e a segurança política sobre a legitimidade democrática, estabelecendo um precedente legal para os futuros ditadores argentinos e também para os presidentes democráticos que pensam que a lei é ornamental.

Em outros casos latino-americanos, os tribunais não foram facilitadores, em vez disso, os golpes foram legitimados por partidos conservadores e anticomunistas que controlavam as legislaturas nacionais. Após uma derrota nas urnas, esses conservadores se consolidaram e tomaram o poder dentro das instituições do governo e depois impuseram políticas impopulares e desiguais.

Por exemplo, no Brasil, em 1964, políticos conservadores, incluindo uma maioria no Congresso, apoiaram um golpe de Estado contra o presidente eleito João Goulart. No Chile, Augusto Pinochet liderou um golpe contra Allende, legitimamente eleito, derrubando à força o governo em 1973. O ditador dissolveu imediatamente o Congresso, mas os partidos conservadores apoiaram o golpe.

Os Estados Unidos apoiaram esses dois golpes como parte de sua cruzada anti-esquerdista da Guerra Fria. Mais recentemente, vemos um perigo similar no Brasil, onde os tribunais superiores se opõem à ameaça de um golpe bolsonarista no próximo ano, mas as Forças Armadas e outras instituições estatais parecem manter uma ambiguidade alarmante sobre os perigos fascistas do bolsonarismo.

Na história do golpismo, o caso argentino tem a particularidade de que a Justiça se esqueceu de sua função e acompanhou o poder de fato desde o começo. O teórico jurídico mais importante do fascismo, Carl Schmitt, já havia apresentado sua ideia de que a legitimidade é mais importante do que a legalidade, ou seja, se um governo é popular e, portanto, “legítimo”, esta legitimidade é mais importante do que o marco legal pré-existente. Esta teoria levou Schmitt a argumentar que a palavra do líder é fonte do direito. No limite, esta situação destrói a democracia, como aconteceu com o nazismo.

No fascismo, o poder discricionário do ditador prevalece sobre o estado de direito. Na Alemanha nazista, Adolf Hitler se representou como “o juiz supremo da nação”. Schmitt alegou em 1934 que o Führer era a encarnação da “jurisdição mais autentica”. Schmitt tinha intenções carreiristas e ideológicas. E terminou se convertendo em um nazista completo, legitimando o Führer com sua personalidade jurídica e, em última instância, dando cobertura legal à ideia fascista de que o líder sempre tem razão.

Como Schmitt, a maioria dos juristas, promotores, juízes e funcionários públicos aceitaram a transformação do sistema jurídico de Hitler de tal maneira que ele se tornou a última palavra legal.

Uriburu tinha as mesmas intenções que Pinochet ou os generais da Junta Militar argentina nas décadas de 1970 e os primeiros anos de 1980. O mesmo pode ser dito dos governos que destroem a democracia, como os da Nicarágua, Venezuela ou El Salvador na atualidade, ou dos políticos aspirantes a fascistas que glorificam a violência, mentem descaradamente, acreditam que são os donos da verdade e negam a ciência (das vacinas à mudança climática), fazem do ódio e da demonização o foco da política, e fingem que seus interesses são mais importantes do que o marco constitucional.

Todos estes exemplos iluminam a atualização de uma tendência antidemocrática e anticonstitucional daqueles que pensam que o poder e a legitimidade do poder os autoriza a ir acima da lei.

Neste contexto, o aniversário do golpe desastroso de 1930 serve como uma advertência. O direito e a política nem sempre andam de mãos dadas. Mas toda vez que a lei se submete absolutamente à discricionariedade do poder, a democracia sofre ou é destruída, como aconteceu conosco em 1930.

*Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima

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