O artigo 227 da nossa Constituição estabelece que a responsabilidade de garantir os direitos de crianças e adolescentes é compartilhada entre Estado, famílias e sociedade. Isso significa que nós, adultos, somos responsáveis por todas as crianças e adolescentes. O artigo também deixa claro que os menores devem ser prioridade absoluta. Em caso de incêndio, eles devem ser resgatados primeiro.
A mesma Constituição que determinou essa prioridade prevê também, no artigo 14, que podem votar apenas os maiores de 16 anos. Determinamos tanto prioridade absoluta quanto a inelegibilidade por entendermos que crianças e adolescentes não conseguem promover seus direitos sozinhas. Estão em processo de formação e precisam de atenção, cuidado e proteção.
Hoje, a pobreza está majoritariamente concentrada na população com até 15 anos: 35% estão entre as mais pobres do país. Na faixa superior a 60 anos, 5% estão entre as mais vulneráveis. Fica a reflexão: considerando que recursos são finitos, a sociedade brasileira quer alocar mais recursos para os mais velhos em comparação ao que aloca para as crianças?
A desigualdade intergeracional é consequência de um conjunto grande de políticas públicas. Provavelmente, as políticas de mercado de trabalho e de Previdência têm enorme contribuição para esse retrato. A nossa política de combate à pobreza segue a mesma lógica.
Um casal sem filhos, estando abaixo da linha da pobreza, recebe R$ 600 do Bolsa Família, R$ 300 para cada membro. Um casal com dois filhos recebe R$ 800 no total, R$ 200 para cada membro. Portanto, famílias com crianças e jovens recebem 33% menos, em média. A consequência do desenho atual do Bolsa Família agrava a concentração da pobreza entre as crianças.
Talvez o incêndio já esteja acontecendo e seja preciso resgatá-los. Tivessem voz os jovens e as crianças, aprovariam as escolhas que nós fizemos por eles?
O Marco Legal da Primeira Infância, lei de 2016, estabelece que as políticas públicas sejam elaboradas e executadas de forma a "incluir a participação da criança na definição das ações que lhe digam respeito, em conformidade com suas características etárias e de desenvolvimento". Um dos caminhos possíveis para a política pública, mas não o único, caso a sociedade brasileira queira equilibrar a atual desigualdade intergeracional, é aumentar a participação direta das crianças e jovens nas decisões do poder público.
Uma iniciativa concreta é o Comitê das Crianças, um órgão que visa escutar as demandas e as sugestões das crianças para diversos segmentos do município de Jundiaí (SP). Instituído em 2019, após a adesão do Município à Rede Latino-Americana – Cidade das Crianças, o grupo é composto por 25 crianças, escolhidas por sorteio –24 delas divididas entre meninos e meninas, representando as seis regiões do município, e um integrante para representar as crianças com deficiência.
O cronograma das reuniões do comitê é quinzenal e sua atribuição é pesquisar e compilar um documento anual entregue ao prefeito, com pedidos e sugestões para que o município se torne, cada vez mais, das crianças. Nas muitas cidades brasileiras que instituíram o comitê, todas dedicam um capítulo do Plano Diretor exclusivamente aos menores.
Longe de ser uma panaceia para a nossa desigualdade intergeracional, deveríamos estender um capítulo exclusivo para crianças e jovens em diversas outras áreas da política pública, afinal, os nossos prioritários são um terço da população e é atribuição constitucional dos adultos garantir que eles estejam bem representados.
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