Laura Mattos

Jornalista e mestre pela USP, é autora de 'Herói Mutilado – Roque Santeiro e os Bastidores da Censura à TV na Ditadura'.

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Pais devem proibir que os filhos leiam livros com mensagens de que discordam?

Criança tem mais chance de se tornar um leitor crítico ao ter contato com histórias que fujam de clichês

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Uma professora de uma escola particular da região central de São Paulo sempre colocava na lista dos livros uma obra de Jorge Amado. Neste ano, com o clima pós-eleições, teve medo de ser questionada pelos pais sobre a escolha de um autor comunista e o vetou. Alguns alunos pediram que reconsiderasse, disseram ter interesse nesse que é um dos melhores escritores brasileiros. Ela então se sentiu mais segura, teria um argumento no caso de reações negativas, e reverteu a autocensura.

Esse é um exemplo de algo que deixou de ser raro, e o temor da educadora não era infundado. Famílias com os mais variados valores e tendências ideológicas intimidam professores e escolas em razão da seleção de obras com supostos “posicionamentos” ou “mensagens” de que discordam. Faz sentido agir assim?

Santiago Armas/Xinhua
Um livro recém-lançado pela editora Iluminuras nos ajuda a pensar sobre os critérios para selecionar livros para crianças. Em “A Biblioteca e a Formação do Leitor Infantojuvenil: Conversa com Pais e Professores”, a doutora em literatura Dirce Waltrick do Amarante discorre sobre a tendência, que não é nova mas parece estar se acirrando, de se optar por histórias que tenham “mensagens positivas” ou “edificantes”. O mercado literário está mesmo cheio de tudo que é qualquer “coisamente correto”: politicamente, pedagogicamente, ecologicamente.

Amarante lembra autores clássicos que se rebelaram contra essa perspectiva. O dramaturgo romeno Eugène Ionesco lançou contos para crianças nos anos 1960 e foi questionado sobre a mensagem que queria passar. Respondeu que era escritor e não carteiro. Antes, ainda no século 19, Lewis Carroll, em “Alice no País das Maravilhas”, criou a Duquesa, “muito feia”, que teimava em procurar a moral de tudo.

Assim agem pais e até educadores em relação aos livros, aponta Amarante, que conclui ser esse “um exercício estéril, pois seca na fonte a ambiguidade literária que é capaz de gerar múltiplos sentidos a cada leitura”. Se o bicho papão é Marx ou Olavo de Carvalho, não importa. A criança tem mais chance de se tornar um leitor crítico ao ter contato com histórias que fujam de clichês, da linearidade simplista e do tom didático, a partir de uma leitura livre e vasta. É com a leitura vasta, aliás, que as famílias deveriam se preocupar antes de encasquetarem com as “mensagens” dos livros.

Qualquer pessoa que conviva com crianças e adolescentes constata como eles leem pouco. E as pesquisas comprovam essa percepção. Levantamento divulgado no mês passado pela consultoria IDados, com base no último Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica), mostra que no Brasil apenas 23,3% dos alunos do 9º ano da rede pública leem sempre ou quase sempre. É praticamente o mesmo resultado das escolas particulares, 24,1%. O restante, ou seja, quase 80%, lê de vez em quando ou nunca.

Ao abordar a urgência de convencer essa geração a ler, Amarante cita um dos nomes reconhecidos da nova literatura africana, a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, para quem vale tudo para formar crianças leitoras: “Se nada mais der certo, pague-as para ler”.

A professora de português Gina Vieira Pontes conseguiu despertar para a literatura adolescentes de escolas públicas de áreas de vulnerabilidade do Distrito Federal com o seguinte método: ler os livros em voz alta para eles. Ela mesma, filha de pai não alfabetizado e de mãe que estudou apenas até a 4ª série, teve contato tardio com obras literárias, já depois de se tornar professora. Após quase morrer com uma depressão decorrente da frustração por não conseguir engajar seus alunos nas aulas, teve essa ideia e ficou impressionada com o fato de muitos deles, que nunca haviam lido um livro, terem sido “sequestrados” pelas obras. Esse trabalho foi o primeiro a receber o Prêmio Ibero-americano de Educação em Direito Humanos da Fundação SM, que terá neste ano a terceira edição, para a qual as inscrições estão abertas até 15 de julho. A força do projeto de Pontes ficou clara para ela um certo dia em que estava lendo para uma sala do ensino médio um poema de Cristiane Sobral, que discute questões sociais, especialmente o racismo. Um dos estudantes, com um histórico de desinteresse pela escola, assim reagiu quando colegas começaram a conversar, atrapalhando a leitura da professora: “Cala a boca que eu quero ouvir o bagulho!”.

O projeto, além de ter o objetivo de formar o hábito da leitura, buscou refletir sobre as mulheres através de obras como “Diário de Anne Frank” e “Malala”. Os livros não deveriam ter uma intenção didática antimachista, mas qualidade literária capaz de sensibilizar a turma para diferentes visões e de ampliar o repertório cultural e crítico.

Se as crianças e os jovens desenvolverem essas habilidades, poderão decidir por conta própria, por exemplo, se devem ou não ter em boa conta Jorge Amado, que fez Vadinho, seu personagem nada politicamente correto de “Dona Flor e seus Dois Maridos”, afirmar em um diálogo o seguinte: “Na vida, só vale o amor e a amizade. O resto é tudo pinoia, é tudo presunção, não paga a pena”. Quem discorda?

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