Leandro Narloch

Leandro Narloch é jornalista e autor do Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, entre outros.

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Números que jornalistas gostam de ouvir

Imprensa está publicando estatísticas enganosas sobre investimento em audiovisual, homicídios de homossexuais e fome no Brasil

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Uma diferença entre grandes jornais e grupos de WhatsApp costuma ser a maior preocupação com a veracidade das informações. Recorremos a jornalistas profissionais esperando que eles não caiam na conversa de assessorias de imprensa, ativistas e políticos, e publiquem apenas o que tenha passado por escrutínio e verificação.

Isso nem sempre acontece. Em maio, por exemplo, jornais publicaram a seguinte notícia: "A cada R$ 1 investido no audiovisual em São Paulo, R$ 20 são gerados, diz estudo". A matéria se baseou num relatório da Spcine, a empresa municipal de cinema e audiovisual de São Paulo.

Jornais empilhados
Pilha de jornais - Unsplash

Se fosse verdade, teríamos um efeito multiplicador impressionante, inédito na economia mundial. Seria preciso entender por que Elon Musk e outros bilionários não se envolveriam num ramo com tanto retorno ao investimento quanto o audiovisual paulistano.

Também seria necessário explicar por que o dado da Spcine é tão distante de estudos similares. A Ancine calculou que cada R$ 1 de investimento no cinema gerou muito menos —R$ 1,90— em 2019.

Fui atrás do estudo divulgado pela imprensa: uma apresentação de PowerPoint que menciona o R$ 20 num único slide. Passei alguns dias importunando a assessoria de imprensa da Spcine, que enfim me explicou a origem da informação: "a análise da proporção entre o investimento da empresa pública municipal e a movimentação financeira dos projetos contemplados pelos editais de 2015".

Ou seja, a Spcine presumiu que nenhum projeto sairia do papel não fosse o seu investimento. É curioso que, segundo esse tipo de cálculo, quanto menos a prefeitura gastar num filme, mais reais teriam sido gerados. Tampouco se considerou o custo de oportunidade: se aquele R$ 1 fosse investido no Auxílio Brasil ou em pré-escolas, quanto geraria?

O cálculo passa longe dos modelos de insumo-produto em geral usados para se chegar a efeitos multiplicadores. "Já vi muitos cálculos malucos de efeito multiplicador, mas esse de 1 para 20 é campeão", me disse um economista.

Em maioria de esquerda, jornalistas acabam publicando sem filtro informações que confirmam suas visões políticas. Assim como gostam de acreditar que o investimento público em cultura dá resultado, se atraem por notícias negativas relacionadas a governos aos quais se opõem.

Quase todos os jornais e canais de TV do país publicaram recentemente que "mortes violentas contra pessoas LGBTQIA+ aumentaram 33,3% em um ano". Tendo em vista que a taxa de homicídios vem caindo no país, é estranho ela ter aumentado nesta faixa bastante afetada pela violência.

Vamos à fonte: um dossiê do Observatório de Mortes e Violências contra LGBTQIA+. Trata-se, na verdade, de uma contagem de notícias de jornais, portais eletrônicos e redes sociais sobre homicídios contra homossexuais. É um índice de reportagens, não de violência.

De acordo com o relatório, foram 333 mortes desse grupo em 2021. Segundo uma das ONGs autoras do relatório, há 18 milhões de LGBTQIA+ no Brasil. Se esses dados estiverem certos, teríamos então uma taxa de homicídios dessa parcela da população de 1,85 por 100 mil habitantes, enquanto a da população geral é de 20,7.

Ou seja: se acreditarmos nos dados das ONGs, teríamos que concluir que a chance de um indivíduo da população geral ser morto é 11 vezes maior que a de um LGBTQIA+.

Será que homossexuais sofrem um risco tão baixo de violência no Brasil? Claro que não: é razoável acreditarmos que eles sofrem mais que a média. O dossiê da ONG simplesmente não serve como um medidor de tendências estatísticas. Tenta vender "contagem que nós fizemos de notícias sobre homicídios" como "homicídios". E os jornalistas compram.

A desinformação mais perturbadora publicada pela imprensa é sobre a fome. Jornais, canais de TV e muitos políticos têm repetido que "33 milhões de pessoas passam fome no Brasil". O número seria quase o dobro do registrado em 2020.

A informação não vem do IBGE, mas da Pensann (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional). Um inquérito recente publicado por essa rede de ONGs mostrou um claro viés político.

Fala da "onda deformadora do Estado, em curso desde 2016" e dos brasileiros "deserdados por um Estado gerenciado sob a doutrina neoliberal e sob a obsessão pelo equilíbrio fiscal e controle de gastos". Não há menções sobre os efeitos do lockdown sobre a renda e a segurança alimentar das famílias.

Se o número fosse verdadeiro, poderíamos concluir que programas como Bolsa Família ou Auxílio Brasil têm um poder muito baixo de lidar com a fome no Brasil. Como seria possível a fome quase dobrar enquanto os programas de transferência de renda aumentaram em orçamento, número de atendidos e repasse médio, que passou de R$ 190 para R$ 408?

Na verdade, como revelou uma reportagem da Gazeta do Povo, o estudo da Pensann utiliza um conceito muito mais amplo que a referência do IBGE. Enquanto para o IBGE fome é a "situação em que pelo menos alguém ficou o dia inteiro sem comer um alimento", os ativistas mediram a insegurança alimentar grave, "uma redução da quantidade consumida para todos os moradores". Nas notas enviadas à imprensa, o fenômeno é vendido como sinônimo de fome —e os jornalistas compram.

Agindo assim, o jornalismo profissional deixa de se diferenciar do amador. Aproxima-se dos ativistas de WhatApp que passam o dia compartilhando notícias duvidosas que lhes convêm.

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