Leão Serva

Jornalista, foi coordenador de imprensa na Prefeitura de São Paulo (2005-2009). É coautor de "Como Viver em São Paulo sem Carro".

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A tragédia e a tragédia de Mariana

Vila destruída por lama muda de lugar, mas atividade que gerou a tragédia continua

Imóveis em ruínas da antiga vila de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), após rompimento de barragem da Samarco
Imóveis em ruínas da antiga vila de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), após rompimento de barragem da Samarco - Marcelo Leite - 1º.nov.18/ Folhapress

Está começando agora a construção de uma pequena vila no município de Mariana, em Minas Gerais, a nova Bento Rodrigues. Os trabalhos vão levar pelo menos dois anos. Como ainda não têm as licenças ambientais obrigatórias, certamente ocorrerão atrasos. Os dois anos podem, fácil, virar quatro ou mais.

O rompimento da barragem da mineradora Samarco aconteceu no dia 5 de novembro de 2015, dois anos e sete meses atrás. Estamos falando que os moradores da antiga vila só poderão mudar-se para casas próprias, como as que tinham antes, entre quatro e seis anos depois. Em Paracatu, outra vila próxima, tragada sob a lama alguns minutos depois, terá o prazo mais alongado.

Naturalmente, quando as casas estiverem prontas, centenas de vítimas vão comemorar a possibilidade de voltar a ter um “lar doce lar”. Os executivos da mineradora já não serão os mesmos e participarão das festas de inauguração. Vão vestir a fantasia de benfeitores. Como nas ficções de TV, o último episódio será de festas e churrascos. Todos comemoram juntos o final feliz. Esqueçamos a tragédia, começa outra novela.

A lama enterrou muitas coisas: gente, casas, carros, ruas, criações, vacas, cães, galinhas, igrejas, afetos, relações de vizinhança, parentesco, arte sacra e popular, fotografias, livros escolares, profissões, roupas... Tudo!

Agora, nesses mais de 30 meses desde a tragédia, um novo soterramento vem ocorrendo. A Samarco e a fundação Renova, criada para fazer as compensações pela tragédia, torcem pelo esquecimento de grande parte do que aconteceu. Para eles, o tempo e os atrasos não são tão negativos, especialmente se puderem ser atribuídos à burocracia do Estado.

Digamos que é preciso que Bento Rodrigues mude para que tudo continue como antes. Principalmente o essencial: o sistema de extração de ferro será mantido e, por isso mesmo, outras tragédias iguais podem acontecer em Minas Gerais.

O rompimento da barragem de Fundão não foi um acaso do destino, uma tragédia climática (mesmo elas previsíveis, todos os anos no Brasil). Bento Rodrigues, Paracatu, o vale do rio Doce e até as baleias do oceano Atlântico foram vítimas de uma atividade destrutiva, a exploração de minério de ferro, que, em Minas Gerais, é feita da forma mais arcaica e arriscada, como em outros países já não se faz. É irracional, se não criminoso, manter o acúmulo de detritos líquidos, altamente tóxicos e indestrutíveis, em imensos reservatórios que só crescem, se tornam verdadeiros oceanos, contidos por barragens que um dia, de tempos em tempos, podem se romper.

No processo de administração da amnésia, não vamos aprender nada com a tragédia: o modo de extrair minério de ferro continuará produzindo tragédias potenciais, porque a sociedade não discutiu o fundamental, a própria atividade que gerou a tragédia.

Bento Rodrigues não deveria ter saído de onde sempre esteve: sua permanência ali criaria um memorial permanente da tragédia, um alerta para o futuro, enquanto a visão do progresso das correções dos danos serviria de termômetro das compensações. Ao levar a nova vila para um lugar 9 km distante do original, consagrou-se a tragédia como um destino inexorável.

É como se, em 1950, cinco anos depois da explosão da bomba atômica, o governo norte-americano tivesse construído, distante do sítio original, uma nova Hiroshima. Inaugurada com pompa e circunstância, com a presença do piloto do avião Enola Gay, seria a consagração do esquecimento, em lugar daquele prédio incômodo que resistiu ao impacto do ataque e se tornou um símbolo para as gerações futuras.

Hiroshima tem seu símbolo, as Torres Gêmeas, em Nova York, também. Qual é o memorial de Mariana e Bento Rodrigues? Se depender do projeto em curso, nada. Ao contrário, a empresa Samarco logo vai construir uma barragem ainda maior, incorporando para sempre o espaço ocupado pelo distrito original à sua imensa represa de lava envenenada.

Bento Rodrigues não terá nada, só uma vilazinha nova e outras compensações que mais servem para comprar o silêncio das vítimas.

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