Lúcia Guimarães

É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.

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Lúcia Guimarães

Cultura individualista dos EUA agravou a pandemia

Individualismo intransigente é parte integral da mitologia sobre o caráter do país

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Uma homenagem breve e sombria na Casa Branca registrou o dia em que os EUA ultrapassaram a marca de 500 mil mortos por coronavírus. O país com 4% da população do planeta continua recordista na pandemia, com 20% dos mortos e 25% dos casos de infecção.

São números estarrecedores para um país rico e campeão de Prêmios Nobel em ciências e medicina. Há farta comprovação de que decisões tomadas por Donald Trump, há um ano, selaram o destino de centenas de milhares de mortos. Além do negacionismo motivado pela obsessão com a reeleição, o ex-presidente obstruiu ações de epidemiologistas no governo federal.

Integrantes do Congresso americano fazem homenagem às 500 mil vítimas da Covid-19 no país
Integrantes do Congresso americano fazem homenagem às 500 mil vítimas da Covid-19 no país - Al Drago - 23.fev.21/Getty Images/AFP

Mas há um traço cultural norte-americano que precede o ano desastroso de Trump à frente da pandemia. É o chamado “individualismo áspero", um termo cunhado por outro presidente catastrófico, Herbert Hoover, que ajudou a empurrar os EUA para a Grande Depressão dos anos 1930.

O individualismo intransigente é parte integral da mitologia sobre o caráter desta república. Foi elevado pela narrativa do Velho Oeste, com seus caubóis solitários, justiceiros numa fronteira sem lei. Quantos energúmenos flagrados em vídeos de celulares, em 2020, aterrorizando fregueses de supermercados em sua recusa de manter distanciamento não vivem a ilusão de serem herdeiros de John Wayne?

John Wayne, a quintessência do individualismo áspero que Hollywood nos deu, seria o melhor amigo do vírus. O ator morto em 1979 continua um dos mais queridos pôster boys do conservadorismo republicano. Só que este Partido Republicano retrocedeu para uma militância anticiência que confunde liberdade individual com promoção de doença e morte.

Como vencer uma pandemia sem sacrificar interesses pessoais pelo bem comum ou acatar decisões de governo? Um exemplo está nos vazios estados rurais da Dakota do Sul e da Dakota do Norte, onde o combate à pandemia foi definido por “responsabilidade individual” e recusa de exigir uso de máscaras em locais públicos fechados. O preço do complexo de John Wayne? A Dakota do Norte exibia, no fim de 2020, a maior taxa de infecção per capita do mundo e a Dakota do Sul não ficava muito atrás.

O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, que, como Trump, nasceu em Nova York, mas tem melhor escolaridade, tentou se livrar da responsabilidade pela má gestão da pandemia com a seguinte pérola: o amor dos britânicos pela liberdade individual teria impedido sacrifícios coletivos e dificultado medidas como testes em massa e rastreamento de casos.

Além de sugerir que alemães ou franceses não têm amor à liberdade, Boris passou como um trator sobre um dos mais caros motivos de orgulho da ex-potência imperial: os anos de sacrifício, abnegação e serviço público sob ataques nazistas na Segunda Guerra.

Os americanos também não encaram um período marcante de sacrifício coletivo desde a Segunda Guerra, com adesão ao racionamento de comida, combustíveis e roupas. Mulheres foram trabalhar na indústria de defesa e voluntários recolhiam matéria-prima para o esforço industrial militar. Mas havia uma diferença, a mobilização na Segunda Guerra era liderada pelo governo.

Hoje, Joe Biden pisa em ovos quando pede aos americanos o pífio sacrifício de usar máscaras durante cem dias para evitar mortes de seus compatriotas. O caubói agora atira no próprio pé.

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