Lúcia Guimarães

É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.

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Descrição de chapéu

Harry quer fazer biografia de palácios, iates e jatos privados parecer saga heroica

Só se fala em gaslighting porque o príncipe acusou a coroa britânica de 'gaslighting institucional'

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Precisamos falar de gaslighting. A palavra do ano de 2022, escolhida pelos editores do venerando dicionário Merriam-Webster, não tem tradução em português, o que não dispensa lusófonos loquazes de usá-la. Gaslighting é a manipulação psicológica de alguém, geralmente prolongada, para que a pessoa questione a própria percepção da realidade.

O termo vem de uma peça britânica de 1938 levada ao cinema duas vezes. Quem acreditava que só existia a segunda versão —"À Meia Luz", de 1944—, que valeu um Oscar à atriz Ingrid Bergman, pode se dizer vítima de gaslighting. A primeira, de 1940, foi filmada no Reino Unido e é amplamente superior à de Hollywood, dirigida por George Cukor. Mas o estúdio americano MGM fez uma agressiva campanha de gaslighting e tentou destruir todas as cópias existentes do original britânico.

Cena da série documental 'Harry & Meghan' que conta a jornada do casal, do início do namoro ao afastamento da família real
Cena da série documental 'Harry & Meghan' que conta a jornada do casal, do início do namoro ao afastamento da família real - Reprodução/Netflix

O verbo gaslight foi votado como um dos mais úteis entre linguistas americanos na década passada, mas se tornou bem mais popular sob a Presidência de "fatos alternativos" de Donald Trump.

Nesta semana, só se fala em gaslighting dos dois lados do Atlântico porque o príncipe Harry acusou a coroa britânica, isto é, seu pai, seu irmão e o entorno real, de "gaslighting institucional".

Harry e Meghan, cuja falta de ironia sobre a própria bolha de privilégio é quase admirável, pensam que moram nos EUA. Mas habitam, de fato, o país de Oprah Winfrey, a empresária vizinha deles num enclave de zilionários na Califórnia. Na república da Oprah, não existe verdade factual, mas a "sua verdade", geralmente chancelada depois de muita terapia. Lá se fala um dialeto repleto de psicobobagens e o mundo é dividido entre vilões e mocinhos traumatizados.

Assim, "Harry & Meghan", que a Netflix anuncia como o documentário mais visto da sua história na semana de estreia, não é propriamente um documentário, mas, como diz o casal, "a nossa verdade", não importa se várias inverdades já foram denunciadas nos primeiros episódios.

"Harry & Meghan", além de ser uma xaropada interminável, é uma vitrine além da vida íntima ridiculamente compartilhada pelo casal. Mostra uma característica desses tempos em que segurança econômica e status são adquiridos em detrimento de empresas ou instituições. A Netflix não teria pago US$ 100 milhões (R$ 528 milhões) ao inglês neurótico e pouco informado e à atriz medíocre que escrevia blog de autoajuda para contar suas histórias se eles não tivessem o carimbo da monarquia que já dura mil anos.

Nessa economia de perpétuo branding, o sucesso não é medido por trabalho ou talento, mas pela venda de uma identidade performática. Não é coincidência que o casal seja o saco de pancadas favorito dos reacionários tabloides britânicos, já que a direita contemporânea se especializa em usar apitos de cachorro identitários para atacar a "esquerda globalista".

Enquanto acusa seus parentes de gaslighting, o príncipe choramingão quer convencer um público crédulo de que uma biografia de palácios, iates e jatos privados é uma saga heroica. Sem a mesada do papai rei, é essa realidade alternativa que atrai remuneração milionária na economia de atenção.

Harry se exilou do país que acusa de gaslighting. E se tornou cidadão do país que recompensa outra prática, também sem tradução em português: o bullshiting.

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