Lúcia Guimarães

É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.

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Lúcia Guimarães
Descrição de chapéu Partido Republicano Rússia

Contribuição da mídia para consolidar propaganda como fato se repete como tragédia

Termos adotados por jornalistas tornam-se exemplo da falta de resistência a campanhas autoritárias

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O primeiro aniversário da invasão da Ucrânia, nesta semana, é marcado por referências à Guerra Fria 2.0. É um termo emblemático da facilidade com que os autores do primeiro rascunho da história, também conhecidos como jornalistas, aderem às zonas de conforto dos clichês.

Para quem testemunhou o que estava em jogo na Guerra Fria pré-digital, é difícil não notar a linguagem da mais letal cria contemporânea produzida pelo confronto original entre os EUA e a União Soviética. No primeiro discurso ao Congresso russo desde a invasão de 2022, Vladimir Putin parecia, em vários momentos, mais inspirado por Damares Alves do que por Nikita Krushchov.

Apoiador de Donald Trump vesta camiseta com rosto do ex-presidente dos EUA em West Palm Beach, na Flórida
Apoiador de Donald Trump vesta camiseta com rosto do ex-presidente dos EUA em West Palm Beach, na Flórida - Giorgio Viera - 20.fev.23/AFP

Discorreu messianicamente sobre gays, pedofilia e neutralidade de gênero, como se tivesse iniciado uma guerra que já matou centenas de milhares para impedir que meninos ucranianos brinquem com bonecas.

Em comparação, a lendária cena do ex-secretário do Partido Comunista soviético brandindo seu sapato em protesto a um delegado na ONU, em 1960, parece um exemplo de comedimento. Ele estava furioso pois um diplomata filipino disse que a União Soviética havia privado a Europa Oriental de direitos políticos.

Com ou sem o desbotado e senil Donald Trump, a campanha presidencial de 2024 nos Estados Unidos está se revelando trumpiana em esteroides no campo republicano. Não há debate propriamente ideológico, discussão sobre política econômica ou qualquer visão de futuro.

Imitando o saudosista czar em Moscou, aspirantes como Ron DeSantis e Nikki Haley veem nos eleitores um culto de ignorantes obcecados com a ameaça da exposição radioativa a drag queens. E não faltam, entre praticantes do meu ofício, escribas dispostos a repetir como fato o que não passa de propaganda.

Começou com "fake news", na campanha americana de 2016. Era óbvio que fake news era um bordão de campanha de Trump, não um sinônimo de "notícia falsa" em inglês. Consagrou-se como expressão roubada por autocratas em todo o mundo para designar fatos incômodos a serem suprimidos. Adotada por jornalistas, tornou-se exemplo ainda mais egrégio da falta de resistência à propaganda autoritária.

Nesta temporada, a mídia estenografa "woke" como adjetivo sinônimo de zelo excessivo de consciência política. É outra palavra sequestrada pela propaganda racista da ultradireita. "Woke" emergiu nos anos 1970 nos EUA como referência a formas mais sutis de violência e desigualdade racial, no período seguinte à passagem de leis de direitos civis. Decolou na década passada, com o impulso do Black Lives Matter.

Após a explosão dos atos pela morte de George Floyd, em 2020, os republicanos viram em "woke" o clichê ideal para designar esquerdismo identitário de qualquer matiz, disfarçando a origem racial do termo.

Assim, a campanha grotesca para banir livros de bibliotecas escolares americanas é apresentada como brava resistência ao "wokismo". E é muito útil para distrair os 74 milhões que votaram para reeleger Trump do fato de que republicanos querem desmantelar o sistema público de Previdência. A contribuição da mídia para consolidar propaganda como fato é um caso de história que se repete como tragédia.

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