Lúcia Guimarães

É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.

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Lúcia Guimarães
Descrição de chapéu Governo Biden China tiktok

Jornalismo TikTok marca cobertura dos óvnis nos EUA

Versão da notícia espetáculo que experimentamos agora é ainda mais distópica do que a que foi prevista

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O episódio recente do balão chinês derrubado na costa dos EUA inspirou os previsíveis arroubos retóricos da turma do ar quente. Podemos sempre contar com o comentariado de plantão que saliva diante da chance de se aproveitar da amnésia coletiva americana e extrair o máximo de drama, especialmente diante de um raro tema que não distingue republicanos de democratas: demonizar a China.

Com três outros objetos voadores não identificados abatidos nos dias seguintes, nenhum deles acusado de ter nacionalidade chinesa, ficou ainda mais claro o tom de frivolidade da cobertura.

O suposto balão espião da China cai no oceano após ser abatido pelos EUA na costa da Carolina do Sul
O suposto balão espião da China cai no oceano após ser abatido pelos EUA na costa da Carolina do Sul - Randall Hill - 4.fev.23/Reuters

Até na entrevista coletiva do Pentágono, um repórter teve a cara de pau de perguntar ao porta-voz se as fotos postadas por observadores enquanto o balão cruzava o território americano não eram da Lua. O governo Biden, mesmo admitindo que o balão de Pequim não representava risco iminente, disparou um míssil de US$ 439 mil, numa decisão em boa parte guiada pela ótica da política interna.

Em 1º de abril de 2001, um avião espião dos EUA voando a 110 km da ilha Hainan, a menor província da China, foi interceptado por dois caças chineses. Um deles colidiu com o espião, e o piloto do caça morreu.

Após um pouso de emergência em Hainan, os 24 tripulantes americanos foram detidos, interrogados e só despachados de volta no dia 11 daquele mês, depois de o governo de Bush filho emitir um vago pedido de desculpas, lamentando a morte do piloto militar. Já o avião voltou para casa em julho do mesmo ano, devidamente desmontado, após um exame cuidadoso feito pela inteligência do governo de Jiang Zemin.

A transição do jornalismo para entretenimento não é recente e foi fartamente anunciada por historiadores e críticos culturais como Neil Postman em "Divertindo-nos até a Morte", de 1985. Mas a versão da notícia espetáculo que experimentamos agora é ainda mais distópica do que Postman previu.

O balão espião ofereceu uma chance rara à cobertura do enfrentamento entre as duas superpotências, pois era visível por onde passava. Comediantes repetiram ad nauseam a mesma piada: para que mandar o balão para fazer o trabalho que o TikTok, o app chinês usado por 136 milhões de americanos, faz melhor?

Mas o contexto raramente oferecido por jornalistas versados em defesa é o fato de que, em matéria de estrago na coleta de informações, chineses conseguem mais em incursões cibernéticas, como mostram os dados hackeados de 22 milhões de funcionários públicos federais em 2015. Ou o furto do design do F-35, caça cujo desenvolvimento já custou mais de US$ 400 bilhões aos contribuintes distraídos com balão.

Numa cultura embriagada por entretenimento, a intolerância ao tédio é confundida com senso de humor ou alegria. Mas a diversão constante é elemento fundamental de sociedades totalitárias, como imaginou George Orwell em "1984". Quando a celebridade é confundida com poder político, cidadãos transformados em espectadores precisam saber o que Anitta pensa sobre a independência do Banco Central.

Triste o país que precisa convocar "influenciadores pela democracia".

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