Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

O nojo nos faz humanos

Tudo o que nos faz lembrar de nossa finitude, de nossas imperfeições e das sujeiras que produzimos provoca ojeriza

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Uma mulher nos meses iniciais de sua primeira gestação procurou seu médico por sofrer piora de suas crises de enxaqueca. Ela acreditava que sua condição iria se agravar, paralelamente ao aumento da barriga, e que o sintoma central para seu problema era o nojo. Enjeitava alimentos, e os cheiros de comidas a entojavam de tal modo que estava quase sempre em jejum.

Ela aprendera anos atrás, por experiência própria, a reconhecer as privações alimentares como desencadeadoras de suas crises de enxaquecas. A grávida se culpava e acreditava que seus nojos eram um capricho seu e por isso era punida com a dor.

Realmente havia um capricho —mas da natureza e que, portanto, fugia do controle da grávida.

Mulher com as mãos no rosto
Enxaqueca não é uma dor de cabeça comum - Unsplash

Sentir nojo de algo é entender essa coisa como suja, contaminada, imoral, ofensiva ou doentia. O nojo é uma emoção exclusiva dos humanos, forjada pela evolução que nos força à esquiva e a adotar a profilaxia. Alimentos estragados ou com má aparência, fezes, corpos em apodrecimento, fluidos corporais são materiais considerados por muitos como nojentos e que realmente abrigam potenciais causadores de doenças. A aversão nos força a evitá-los. Consequentemente, reduzimos os riscos de contágio.

Aparentemente, o nojo comum às gestantes tem também essa função protetora. Pesquisadores comprovaram que mulheres sentem mais enjoos no primeiro trimestre da gestação, época marcada por redução de suas defesas imunológicas —logo, um período de maior suscetibilidade às infecções. O asco exacerbado nessa fase pode aumentar a atenção das grávidas à qualidade dos alimentos, um comportamento que pode reduzir as exposições a infecções alimentares, mas é claro que essa vantagem se perde quando o nojo se torna disfuncional.

A razão central do nojo é nos afastar de doenças. Todavia, em tempos contemporâneos, esse sentimento ficou muito “eclético”. Assim, fatores muito distintos, livres de vermes ou de qualquer micróbio perigoso, podem provocar repugnância, como transgressões sociais ou sexuais, baratas de plástico ou creme de chocolate em formato de fezes.

Cientistas do comportamento animal teorizaram que há outro atributo do nojo: evitar que recordemos de que somos animais e que a pureza humana é uma ideia insustentável. Dessa forma, tudo o que nos faz lembrar de nossa finitude, de nossas imperfeições e das sujeiras que produzimos provoca ojeriza. Essa seria a justificativa do nojo contra o que se considera imoral e contra algumas práticas sexuais.

No entanto, outros estudiosos acreditam que o nojo, a princípio, fez-se para ditar algumas condutas de higiene, com a finalidade de proteção contra infestações. Depois, foi cooptado para determinar regras morais e sexuais para salvaguardar regras comunitárias e fortalecer a coesão entre pessoas de um determinado grupo.

O nojo garante que estímulos divergentes causem uma resposta corporal similar, que engloba, por exemplo, uma típica expressão facial e náuseas. O asco elicitado por gostos ou odores desagradáveis provoca ativação de áreas cerebrais tal qual uma oferta imoral o faz. Em outras palavras, estímulos distintos causam a mesma reação de aversão.

O nojo é flexível, já que se molda em costumes e em regras sociais flutuantes e nos permite lidar com um conjunto de ameaças em expansão, das que ofendem como infecções ou infestações ou das que agridem nossa moral. Por isso os desencadeantes do nojo aumentam, mas suas manifestações fisiológicas e comportamentais continuaram sendo as mesmas.

Esse poder modulável tem relevância até mesmo para o enfretamento da pandemia atual. O psicólogo Richard Stevenson investigou o comportamento de estudantes universitários na Austrália durante as medidas restritivas contra a Covid-19 e identificou um aumento à suscetibilidade dos quarentenados ao nojo e a conseguinte ampliação de medidas de higiene como uso de álcool em gel.

O nojo é ensinado, se espalha e causa problemas como discriminações e distúrbios alimentares. Esse sentimento primitivo nos protege e nos une, inclusive para comentarmos sobre modos de terceiros, uma atitude nem sempre louvável.

A gestante citada no início do texto encontra-se na mão de um determinismo biológico, que a afeta sem lhe dar muita opção de fuga, mas irá melhorar. E como é de se esperar, ensinará seu filho a ter nojo, para o bem ou para o mal.

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