Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo
Descrição de chapéu Mente

Mindfulness, religião e ciência

Prática ajuda a reconhecer que pensamentos, sentimentos e sensações são eventos mentais temporários

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Receba o convite para sentar-se. Caso aceite, mantenha uma postura que incorpore senso de dignidade e de presença. Calmamente atenha-se a sua respiração, diferencie os detalhes das inspirações e das expirações.

Em algum momento, sentirá alguma coceira, inquietação e julgará tudo uma grande perda de tempo. Reconheça estas interferências, congratule-se por as ter identificado. A seguir, volte sua atenção à respiração, ao seu propósito.

Depois venha para outra prática. Desta vez, concentre-se nas sensações, ou falta destas, em cada parte de seu corpo. Discrimine formigamentos, dores, sem ignorar as boas impressões. Perceba o contato da pele com o entorno, descubra os sinais corpóreos.

Mindfulness para lidar com transformações
Prática ajuda a reconhecer que pensamentos, sentimentos e sensações são eventos mentais temporários - Kelvin Valerio via Pexels

Se desejar mais uma nova experiência, aguce seu interesse por tudo o que pode escutar. Não procure por nada específico, não classifique, nem julgue. Esteja aberto aos sons que vierem. Note as mudanças, os ritmos, os sons que compõem o som, e o silêncio entre cada barulho. Gentilmente altere seu foco para seus pensamentos. Observe como surgem e como passam, sem se fixar a qualquer um.

Estas são exemplos, muitíssimos simplificados, de algumas possíveis sessões de mindfulness, ou a meditação da atenção plena –a concentração no propósito e no presente, sem julgamentos. O adepto é estimulado a trazer esses fundamentos para a rotina. Logo, a dispensar atenção aos gestos, às palavras, às reações ao redor e às emoções.

O treinamento em mindfulness ajuda a reconhecer que os pensamentos, os sentimentos e as sensações são eventos mentais temporários, portanto, não são reflexos do eu. Também cultiva a curiosidade, assim como incentiva a experienciar, ao invés de evitar.

Até aqui tudo pode parecer good vibes demais, mas não se engane. Não evitar é uma tarefa difícil. Caso se envolva com a prática, em algum momento será convidado a focar-se em um pensamento incômodo. Algum configurado em mágoas, remorsos, frustrações. Ou quiçá rememoração de nossa disposição para a violência e crueldade. Quando a prática de mindfulness nos convoca a encarar o sofrimento, aproxima-se de outras atividades humanas, especialmente das religiões.

Esta proximidade não surpreende. Afinal, rituais meditativos estão presentes em diversos cultos religiosos, e a meditação da atenção plena deriva do budismo. Mas, apesar destes contatos, mindfulness segue à parte das religiões. Em seus fundamentos não há o sagrado, os sacerdotes são desnecessários, divindades inexistem, não ocorrem considerações sobre a alma e não se encontram crenças metafísicas. Não há Deus em lugar algum, muito menos acima de todos. Mindfulness é uma atividade estritamente secular.

Valores laicos estão à nossa volta. Cientistas ocupam-se de questões que antes cabiam aos religiosos. Ao buscarmos a verdade, frequentemente consultamos a ciência Em época tão materialista, talvez uma provável carência espiritual humana, outrora exclusivamente atendida por religiões, possa ser aliviada por uma forma de meditação, que é o budismo secularizado.

Se secular, os atributos da atenção plena devem ser examinados pela ciência. Para iniciar o desbravamento científico, sem dúvida a principal pergunta é: meditação existe de fato? Ou melhor indagando, existe um fenômeno biológico mensurável que representa o estado meditativo?

Esta pergunta já foi respondida: sim, há este fenômeno. A meditação coincide com um incremento de específicas ondas elétricas cerebrais, as do tipo gama, as que regem a atenção e a memória.

Outra pergunta importante: mindfulness serve para alguma coisa, ou é uma mera moda new age? Sim, serve, a atenção plena é um bom instrumento para saúde mental. Aceitar e não julgar reduz a angústia consequente de certos pensamentos e de certas sensações corporais.

Entender que um pensamento ruim faz parte do momento e que desaparecerá, mesmo com a ressalva de que recorrerá, é um recurso psíquico contra a depressão. Além disso, a meditação pode reduzir o efeito de dores crônicas e até mesmo melhorar a vida de epilépticos.

Mindfulness auxilia o cérebro a tomar conta de si mesmo.


Referências

1. De-Mystifying Mindfulness [Internet]. Coursera. [cited 2022 Apr 13]. Available from: https://www.coursera.org/learn/mindfulness

2. Ivanovski B, Malhi GS. The psychological and neurophysiological concomitants of mindfulness forms of meditation. Acta Neuropsychiatr. 2007 Apr;19(2):76–91.

4. Michaelis R, Tang V, Nevitt SJ, Wagner JL, Modi AC, Jr WCL, et al. Psychological treatments for people with epilepsy. Cochrane Database Syst Rev [Internet]. 2020 [cited 2022 Apr 14];(8). Available from: https://www.cochranelibrary.com/cdsr/doi/10.1002/14651858.CD012081.pub3/full

5. Tang V, Poon WS, Kwan P. Mindfulness-based therapy for drug-resistant epilepsy: An assessor-blinded randomized trial. Neurology. 2015 Sep 29;85(13):1100–7.

6. Goldin PR, Thurston M, Allende S, Moodie C, Dixon ML, Heimberg RG, et al. Evaluation of Cognitive Behavioral Therapy vs Mindfulness Meditation in Brain Changes During Reappraisal and Acceptance Among Patients With Social Anxiety Disorder: A Randomized Clinical Trial. JAMA Psychiatry. 2021 Oct 1;78(10):1134–42.

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