Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo
Descrição de chapéu Mente

Existe mesmo um lagarto dentro de seu cérebro?

A teoria do cérebro trino é imprecisa

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As ideias não surgem do vácuo. Conceitos considerados intuitivos não são produtos da intuição. Discretos e persistentes, imbricam-se na nossa mente, como se sempre estivessem estado ali, brotados do inconsciente. Nem nos damos conta de que foram construídos.

Tome por exemplo a passagem do tempo, parece ser natural medi-la em horas, segundos ou qualquer outra unidade uniforme, invariável. Em Guaxupé, em Minsk, no fundo do mar e no espaço vazio o tempo passa igualmente, não? Esse jeito de entender, na verdade, é uma elaboração ratificada por Isaac Newton (1643 -1727). Antes dele, na Idade Média, não havia sentido pensar dessa forma. O meio-dia era a ocasião em que o Sol ocupava o ponto mais alto do céu. Em dias de inverno, esse momento acontecia antes do que ocorria nos dias de verão.

Platão (428-347), como Newton, sintetizou conceitos que permeiam nossas mentes e parecem ter perdido a autoria. Para o filósofo, há três princípios na alma que espelham o que ele considera a divisão ideal das classes sociais. Obviamente, também em três, a notar: os proletários, os guerreiros e os guardiães —ou governantes. O proletariado promove a subsistência material da sociedade e se submete convenientemente às classes dominantes. Os guerreiros exibem as virtudes da paixão e da coragem, mas, assim como cães de raça, em certas situações agem furiosamente. Os guardiões se distinguem pela posse de sabedoria e da razão fria.

As características dessas três classes sociais diferenciam as três divisões da alma humana. Os apetites englobam toda a nossa miríade de desejos por prazeres, confortos, satisfações físicas. A parte espirituosa, por sua vez, irrita-se perante as injustiças, motiva a superar desafios, a resistir às adversidades e cria o amor à vitória. Por fim, a terceira fração, a mente, que pensa, analisa e pondera racionalmente. Platão, dessa forma é um precursor da psicofisiologia tripartida.

Pitágoras acreditava que os números explicariam o universo. O número três tem presença histórica, a República Romana agônica cedeu poder aos triunviratos, o cristianismo é solido em torno do número três. Moses Mendelssohn, em 1755, divide a psique humana em três: cognição, afeto e volição. Spencer e Jackson (1982) classificaram o funcionamento cerebral em níveis superior, médio e inferiores. Freud definiu o aparato psíquico humano em três: superego, ego e id.

Pintura de Pitágoras escrevendo em livro
O filósofo grego Pitágoras - Wikimedia Commons

O médico Paul MacLean, também firmado no número três, concebeu uma das teorias mais famosas e frequentemente utilizada para nos explicar, nós, os humanos: a hipótese do cérebro trino (1990). Nela há o argumento de que o encéfalo humano amadureceu a partir de três padrões evolutivos centrais.

Primeiro, o cérebro reptiliano, a porção mais baixa, incumbido das funções básicas para a vida e para o movimento. Logo acima, o sistema límbico, a constituir o cérebro mamífero primitivo, ocupado das emoções. Estas servem para alterar as atividades, caso surja um desafio. E, sobre o sistema límbico, o cérebro neomamífero, o suprassumo da evolução neural, que torna possível a cognição que controla as emoções e o comportamento.

De acordo com MacLean, as três regiões do cérebro evoluíram separadamente, em sucessão, como se o aperfeiçoamento encefálico ascendesse por uma escada de três degraus. Essa concepção segue uma metáfora, criada pelo anatomista Ludwig Edinger, no início do século 20, que sugere as divisões cerebrais em estratos animais.

Modelo de cérebro imaginado por Ludwig Edinger
Modelo de cérebro imaginado por Ludwig Edinger - Reprodução

MacLean criou um modelo interessante, mas errado e ainda utilizado. A ideia de que a evolução dos cérebros seguiu adiante pela sobreposição de novas estruturas às mais antigas não é justificável do ponto de vista evolutivo, já que as principais regiões neurais estão presentes em todos os vertebrados, embora existam diferenças em volume dessas estruturas. Além disso, as áreas nervosas não funcionam independentemente umas das outras.

Nem as emoções são produtos originados exclusivamente pela operação de estruturas límbicas, mas também por atividade de neurônios distantes. Emoção e cognição não são eventos independentes; pelo contrário, são funções inter-relacionadas que trabalham em conjunto. Muitas respostas emotivas surgem apenas por termos um cérebro sofisticado, capaz de se encantar com o belo e de se ofender por ironias sutis.

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Imagem de cérebro montada com post-its (Produção: Danae Stephan) - Bruno Santos/ Folhapress

Há funções cognitivas límbicas. O hipocampo, um dos componentes do sistema límbico, é uma peça-chave para a memória. Destaco também que o cérebro não é um mero agente de respostas a estímulos. Melhor, o órgão prediz necessidades para a adaptação adequada. Estímulos provocam respostas cerebrais, mas estas serão influenciadas pelo estado atual do cérebro, para cada momento há uma ação apropriada.

A teoria do cérebro trino é imprecisa, e há demanda por precisão. Pois as dúvidas acerca do funcionamento do cérebro, na saúde e na doença, são enormes. E respostas podem trazer tratamentos ainda indisponíveis.

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