Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Descrição de chapéu Mente

Antraz, envenenamento, recompensas e efeitos adversos do fim do ano

Recordar o que não se honrou e renovar disposições é tradicional nas passagens de dezembro

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Um jovem, em 1876, dedicou-se a pintar cartões natalinos e adicionou um efeito especial. Ele sabia de uma tinta verde que causava uma prazerosa sensação visual. Com capricho, cuidou para que essa cor predominasse em suas figuras.

Em nome de seu artesanato, o rapaz de 22 anos quase morreu envenenado. A coloração era o Verde de Scheele, tecnicamente, arsenito de hidrogênio de cobre, mais veneno do que enfeite.

Um hamster seria o presente para espalhar fofura, em um lar no Natal de 1974. O animalzinho, no entanto, era um reservatório do vírus da coriomeningite linfocítica. E o que disseminou foi o micróbio.

Obra 'Mulher de Bordado' (1871), do pintor alemão Georg Friedrich Kersting
Obra 'Mulher de Bordado' (1871), do pintor alemão Georg Friedrich Kersting - Reprodução

Ao todo, 57 pessoas infectadas em Nova York. No mesmo ano, uma jovem fotógrafa comprou bongôs em Porto Príncipe, Haiti, para distribuir como presentes de Natal, em seu país, os EUA. Ela, com o coração cheio de boas intenções, nem suspeitava que os tambores fabricados com couro de cabras, estavam cheias de esporos da bactéria Antraz.

Este bacilo é endêmico no Haiti, e vive preferencialmente em ruminantes. A moça foi contaminada e passou as festas de fim de ano internada em um hospital. Estes relatos clínicos, efeitos adversos de fim de ano, foram publicados como artigos científicos em revistas médicas muito importantes.

Os tempos são outros. As edições mudaram e, atualmente, temas menos particulares e não tão pontuais são os que estão preferencialmente presentes nos índices dos influentes periódicos. Logo, o que está em voga são as provas publicadas de que, próximo ao término do ano, alastram-se ganho de peso e aumento nas concentrações de colesterol sanguínea.

Outro probleminha revelado: 22% das arritmias cardíacas causadas por consumo excessivo de álcool, cujo apelido simpático é "síndrome do coração de feriado", ocorrem nas últimas comemorações anuais. As publicações não nos deixam esquecer de que enfeites pontiagudos e seus clipes metálicos encontraram o caminho para os brônquios e faringe de crianças pequenas e tornam-se demandas para intervenções endoscópicas ou cirúrgicas.

Cientistas podem aproveitar o Natal para testar questões bem complexas, como o impacto de festividades na bioquímica encefálica. Mensurar as mudanças químicas cerebrais é um desafio, especialmente fora dos laboratórios. Porém, tratamentos invasivos contra a doença de Parkinson abrem caminhos.

Eletrodos estimuladores, por vezes, são implantados cirurgicamente em cérebros de pessoas com esta doença, com os propósitos terapêuticos. Estes dispositivos também monitoram e gravam uma onda eletromagnética neural, que das profundezas cerebrais emerge como um parâmetro objetivo da gravidade da doença.

Quanto mais destas ondas, menos dopamina e mais sintomas. Mas há algo a mais, os sistemas cerebrais de recompensas, encarregados de nos trazer a experiência da satisfação, são estritamente dopaminérgicos.

Pesquisadores estudaram a dinâmica daquelas ondas profundas durante as ceias e as trocas de presentes e constataram aumento da atividade dopaminérgica. Assim quantificaram a bioquímica na festividade, que até provocou melhora de alguns sintomas parkinsonianos.

Contudo, as vezes a dopamina não é suficiente para aplacar o sentimentalismo típico do pequeno burguês, que vem à tona em alguém quando, finalmente, confronta a carência e as privações de tantos com a festividade no seu entorno. Outra fonte de amargura é encarar o fim do prazo para as promessas lançadas há 365 dias.

Promessas são um dos mecanismos psíquicos mais antigos –e específicos– de humanos, importantes para moldar a cooperação e a confiança entre indivíduos. Faltar com elas é exigente. Para assim proceder, o cérebro aumenta suas forças inibitórias, provavelmente para que se evite abrir o jogo e confessar a quem quer que seja que haverá uma decepção.

Quando o momento de desistir já é inevitável, centros nervosos motivacionais enaltecem as razões para o rompimento do compromisso e passam a valorizar os esperados benefícios. Assim como compensam incômodos causados por eventual sentimento de culpa ou das sensações aversivas, caso a falta de palavra arranje algum confronto.

Estes movimentos acalmam as sensações causadas por fracassos e também das consequências psíquicas da mentira desmascarada, às custas de muita energia cerebral. Você, leitora esperta, acabou de concluir que os miolos humanos estão muito bem adaptados para as consistentes ou inconsistentes quebras de promessas, você já sabia que assim as pessoas prosseguem.

Recordar o que não se honrou e renovar disposições é tradicional nas passagens de dezembro.

Mas o que é tudo isso diante da esperança da vida eterna e demais significados desta época? Um próspero Ano-Novo.

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