Luís Francisco Carvalho Filho

Advogado criminal, é autor de "Newton" e "Nada mais foi dito nem perguntado"

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Descrição de chapéu Folhajus forças armadas

Independência e morte

A tradição de perversidade das Forças Armadas

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Muito além da celebração barata que Jair Bolsonaro fará do bicentenário da Independência, com a exibição do coração em formol do próprio imperador, e da reinauguração do simpático Museu do Ipiranga, dois episódios históricos merecem menção.

O Brasil rompe os laços com Portugal sem forças armadas da sua confiança. D. Pedro, para formar e comandar exército e marinha nacionais, e reprimir os movimentos de resistência portuguesa, contrata oficiais estrangeiros, mercenários, o que era prática comum em territórios independentes.

O general francês Pedro (Pierre) Labatut, oriundo das guerras napoleônicas, mas com experiência de luta na América Latina, é contratado pelo Império, para formar o "Exército Pacificador" e combater, na Bahia, forças leais a Portugal. Tem longa carreira militar no Brasil, até ser reformado, em 1845, como marechal de campo.

Policial pisa no pescoço de mulher negra e arrasta a vítima
Depois de pisar no pescoço de mulher negra e arrastar a vítima, policial foi inocentado pela Justiça Militar de São Paulo - Reprodução/Twitter

Em dezembro de 1822, Labatut ordena a execução sumária de 52 escravos e o açoitamento de muitos outros depois de batalha travada nas cercanias de Salvador.

Para o historiador João José Reis, é "a mais brutal punição contra escravos rebeldes baianos de que se tem notícia".

Em março de 1823, ainda no contexto da guerra da Independência, é admitido na Marinha do Império o tenente John Pascoe Grenfell: natural da Inglaterra, participa das lutas pela independência do Chile, sob o comando de Thomas Cochrane, que, também contratado no Brasil, seria o primeiro almirante.

Grenfell recebe a missão de pacificar o Pará e, meses depois, ordena o fuzilamento de cinco "bandidos" (dois soldados, dois sargentos e um paisano) em Belém, aleatoriamente escolhidos para exemplo.

A cidade ferve e Grenfell aprisiona nos porões de embarcação ancorada no porto ("Diligente") 256 soldados e paisanos envolvidos em desordens. Sufocados pelo calor e pela falta de ar e espaço, amontoados e ultrajados, são tomados por um "frenesi" de raiva e furor: na manhã seguinte quatro sobreviventes e uma pilha de 252 corpos dilacerados.

Nem Labatut nem Grenfell, oficiais fundadores das Forças Armadas, seriam punidos pelos crimes que cometeram.

O almirante Grenfell morreu em 1869, cônsul do Brasil em Liverpool. Nas "Efemérides Brasileiras", o barão do Rio Branco explica sua absolvição em 1826: a Grenfell, "um dos maiores nomes da nossa história naval", nenhuma responsabilidade poderia caber pela "desgraça ocorrida a bordo do Diligente".

Sem nunca esconder a decisão de fuzilar, Labatut tem outros momentos de crueldade e também se submete a conselho de guerra.

Reminiscência de sua atuação militar, nasce a lenda de um monstro antropófago de forma humana, chamado Labatut, na fronteira do Ceará com o Rio Grande do Norte, "pior que o lobisomem", "pior que a caipora e mais terrível que o cão coxo". Câmara Cascudo, no "Dicionário do Folclore Brasileiro", recolhe a descrição: "Mora, como dizem os velhos, no fim do mundo, e todas as noites percorre as cidades para saciar a fome". Ele "gosta mais dos meninos porque são menos duros que os adultos".

Em 2022, ao absolver o soldado da PM que pisa o pescoço de mulher negra em Parelheiros, a Justiça Militar de São Paulo honra esta tradição de perversidade institucional, impunidade criminosa e racismo, que, 200 anos depois da Independência, o bolsonarismo festeja.

Grenfell inaugura uma longa temporada de massacre de prisioneiros. Labatut deixa o legado do extermínio de gente preta.

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