Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé

Um caso de crítica cultural e não um controverso diagnóstico do autismo

Em uma cultura polarizada, onde não existe lugar para a ironia, tudo é mortalmente literal

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Na Alemanha, a crítica cultural é largamente reconhecida —Kulturkritic. Entre nós, ela também o é, mas com menos amplitude. Um dos objetos mais presentes na prática dessa disciplina é a análise das transformações históricas —o que em si implica impactos sociais, políticos e psicossociais— dos comportamentos, das instituições, das visões de mundo e dos produtos culturais.

A pressão pela mercantilização do mundo —o que significa que tudo vira mercadoria— é um dos marcos dessa disciplina, no mínimo, desde Theodor W. Adorno (1903-1969).

A ilustração figurativa de Ricardo Cammarota foi executada digitalmente, em técnica vetor. A imagem apresenta dois rostos com efeito gráfico de pixels (imagem composta de mosaico de quadrados) - sem detalhe de contornos.
Ilustração da coluna Pondé de 15.mai - Cammarota

Um fundamento da crítica cultural como método está no olhar sobre a indústria cultural enquanto determinante dos comportamentos ao longo dos séculos 20 e 21. Hoje, a indústria cultural não está apenas nas mãos da mídia profissional, ela está na sua mão: no celular, nas redes e na internet.

Muito do meu trabalho ao longo desses anos nesta Folha tem sido fazer crítica cultural. Já voltei a questões que discuti em outras oportunidades, ao longo dos anos, a fim de torná-las mais claras.

Hoje, volto a uma dessas questões: a crítica que fiz a uma série de TV na coluna de 28 de agosto de 2022. Muitos leitores se comunicaram comigo na época, leitores que me seguem e reconhecem o contraponto que faço ao coro dos contentes que impera no debate público atual. Dedico essa coluna a esses leitores.

Aquela coluna foi inspirada numa série da Netflix que à época fazia muito sucesso —"Uma Advogada Extraordinária". Minha discussão ali, como sempre, era uma crítica cultural —uma série é um produto da indústria cultural— e não um debate acerca de diagnósticos psiquiátricos do autismo, uma vez que não sou da área, embora tenha alguns bons amigos nela.

O foco da crítica era a transformação de um quadro de grande sofrimento de famílias e pessoas numa personagem que parecia viver facilmente um roteiro de sucesso, distanciando-se assim da realidade sofrida no dia a dia. Esse tipo de procedimento cultural produz ainda mais sofrimento pois se caracteriza por uma representação alienante da vida concreta das pessoas que experimentam o real.

Como analogia ao processo de transformação cultural da representação do autismo em nossa época, fiz referência à "moda" que a identidade melancólica sofreu ao longo dos séculos, na história da medicina, na literatura e no cinema.

Dentro do procedimento de crítica cultural referido acima, apontava na série que inspirou a coluna o fato de que traços da identidade autista eram facilmente representados pelo capitalismo como "ativos cognitivos" —foco, concentração e similares. Em momento nenhum fiz referência a capacitismos ou discriminação de comportamento algum. Não era esse o foco da discussão e, sim, a crítica cultural da representação do autismo no ambiente contemporâneo.

Mesmo a referência à teoria do médico psicanalista inglês D.W. Winnicott (1896-1971) —teoria esta largamente reconhecida e praticada por profissionais da área da saúde mental no mundo inteiro, inclusive na China, conhecida por suas escolhas pragmáticas— exemplificava a reação à dita teoria por parte de uma plateia irada com a ideia de que uma falha ambiental —falha da mãe, do pai, da família em geral— pudesse ser tomada como uma causa em questão. Logo, o foco era o comportamento da plateia, mais uma vez, e não uma discussão sobre procedimentos diagnósticos.

Enfim, o objeto da coluna era uma crítica cultural da representação contemporânea do autismo em curso de instalação, não uma controvérsia diagnóstica —deixo isso para os profissionais da área da saúde. Mas um pecado capital eu cometi. Apesar de ter avisado no texto em questão, usei de ironia, e, numa cultura polarizada como a nossa, não há lugar para a ironia. Tudo é mortalmente literal.

Leitores que se identificaram como autistas, via emails e nas redes, me agradeceram por finalmente apontar um grande equívoco no modo de representação das suas vidas reais. Ao contrário da série que inspirou o artigo, nada há de hype no autismo e, sim, alguém tentando sobreviver ao mundo que não é fácil para ninguém.

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