Em jornalismo, há uma regra chamada fairness ("equidade", em português) que é conhecida como "ouvir os dois lados" sobre uma questão —o que não significa dar mesmo peso aos dois lados. Fairness é um método de investigação: ouvem-se os dois lados para conhecer melhor o objeto, mas, no texto, o jornalista precisa explicitar qual é a visão unânime, ou mais aceita, no campo investigado.
Em um texto sobre astronomia, não faz sentido dizer que a Terra talvez seja plana porque há leigos que acreditam nisso. O mesmo vale para a política editorial: não é justificável publicar artigos defendendo que a Terra é plana. Em ciências exatas, é mais fácil encontrar consensos sobre determinados objetos (há imagens provando que nosso planeta é um globo, por exemplo).
Porém, algo diferente se verifica nas ciências humanas. O conceito de "mais-valia", criado há mais de 100 anos por Marx, ainda não é unanimidade no campo da economia. Imagine, agora, conceitos bem mais recentes, como "racismo estrutural", "lugar de fala", "gênero neutro" etc.
Criticar o conceito de "mais-valia" não implica apoiar exploração de trabalhadores, quer dizer apenas que esse não seria o melhor conceito para abordar a questão. Da mesma forma, criticar o conceito de "racismo estrutural" não significa negar a existência do racismo, apoiá-lo ou relativizá-lo. Esses conceitos ainda estão em disputa no campo das ciências humanas e a imprensa acerta ao dar espaço para esse debate.
Assim, a carta aberta de jornalistas da Folha contra a publicação de artigos de Antonio Risério e Demétrio Magnoli comete falácia retórica quando iguala críticas a conceitos/práticas do identitarismo —realizadas por esses pesquisadores— à relativização do Holocausto (um fato histórico documentado) e ao terraplanismo (uma crença irrelevante para a ciência). A imprensa não é intocável e deve ser criticada, mas sem moralismos e com honestidade intelectual.
Lygia Maria
Mestre em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.
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O que pode dizer um jornal?
Questionar conceitos do identitarismo não é o mesmo que relativizar o Holocausto
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