Manuela Cantuária

Roteirista e escritora, é criadora da série 'As Seguidoras' e trabalha com desenvolvimento de projetos audiovisuais

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Manuela Cantuária

A mancha

'Melou' sua viagem de Réveillon para uma praia paradisíaca no Nordeste

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Acordou com o pé direito, mas o pé não desgrudou do chão do quarto. Sem perceber, pisou em cheio em uma mancha de óleo. Sim, uma poça densa e viscosa de petróleo cru que se espraiava ao pé de sua cama. 

Estranho, porque ela morava na região Sudeste, a quilômetros do litoral. O que não a impediu de se considerar uma vítima da tragédia ambiental, que “melou” sua viagem de Réveillon para uma praia paradisíaca no Nordeste. 

Há uma mancha preta caindo sobre todo o espaço da ilustração. A mancha não cobre todo o espaço e é possível ver os pés de uma pessoa. Em branco, há o rosto de uma pessoa no meio da grande área preta
Silvis/Folhapress

Enquanto ecossistemas inteiros e milhares de famílias lutavam para sobreviver ao desastre, ela também travava uma batalha interna, dividida entre cancelar suas reservas ou remover as manchas de óleo com Photoshop, preservando, pelo menos, suas postagens no Instagram.

Mas, dessa vez, a mancha de óleo tinha ido longe (ou seria perto?) demais. Talvez tenha pego carona em uma corrente marítima, descido pela costa, invadido um cano de esgoto, escalado 11 andares pelo encanamento e enfim se esgueirado pelo ralo do banheiro da suíte. Uma hipótese um pouco menos absurda do que botar a culpa no Greenpeace.

Muitas presenças tóxicas já haviam entrado naquele quarto, mas nada, nem ninguém, se comparava àquela poça fumegante de benzeno e outros compostos cancerígenos.

Considerou pedir ajuda, mas precisava agir o mais rápido possível para evitar os efeitos devastadores do petróleo no sinteco. 

Foram horas esfregando o chão. Tentou de tudo, mas os rastros da mancha não saíam nem com lágrimas. 

Atrasada para o trabalho, decidiu armazenar o grosso do petróleo em sacolas plásticas e desovar tudo na lixeira do prédio. Sua cabeça latejava como uma máquina de pinball —pensou até que fosse culpa, mas era um sintoma de intoxicação. 

Pediu um carro e recostou-se no banco de trás, achando que teria algum sossego. A mancha de óleo agora escorria pelos alto-falantes do rádio junto com as notícias. Contê-la, pelo visto, não estava na lista de prioridades do governo, que parecia mais preocupado com teorias da conspiração. Seria melhor ter ido a pé. 

Foi recebida no escritório pelo cheiro inconfundível de ovo podre frito no óleo queimado. Não acreditou quando olhou para baixo e lá estava ela de novo, como uma sombra. A mancha de óleo. Entendeu, enfim, que não se livraria dela tão cedo.

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