Manuela Cantuária

Roteirista e escritora, é criadora da série 'As Seguidoras' e trabalha com desenvolvimento de projetos audiovisuais

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Manuela Cantuária
Descrição de chapéu

A canceladora não distingue seus alvos por credo, raça ou ideologia

Quando cancelarem o cancelamento, ela terá de cancelar a si própria e se deletar das redes

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O Sol nasce, os passarinhos cantarolam, o presidente fala asneiras. Poderia ser um dia como outro qualquer, mas, para ela, é o dia perfeito para cancelar alguém.

A canceladora abre a janela do Twitter, ávida por fazer justiça pelas próprias mãos. Munida de postagens antigas, hashtags em caixa alta e prints comprometedores, ela se lança à sua caçada. Uma heroína sem capa, sem superpoderes e sem nada melhor para fazer em uma manhã de terça-feira.

Sua missão? Limpar a internet de toda a hipocrisia. Sua estratégia? Condenar aqueles que erraram a uma pena mais dolorosa do que a morte. Pois se a morte é o fim do sofrimento, o cancelamento é apenas o começo.

E, para ser cancelado, basta estar online.

Acima do bem e do mal, a canceladora não distingue seus alvos por credo, raça ou ideologia. Um homem branco heterossexual, por exemplo, será tachado de opressor. Uma mulher negra lésbica, traidora do movimento.

Ilustração de uma pessoa com corte chanel nos cabelos e usando batom vermelho, óculos escuros com armação vermelha e uma blusa de manga longa preta e branca. Ela abaixa os óculos com uma das mãos e olha para frente e aponta a tela do celular com a outra. Na tela do celular, é possível ler "CANCELADA". A mesa, onde está o celular, é rosa e o fundo é quadriculado em verde e branco.
Publicada nesta segunda-feira, 7 de junho de 2021 - Silvis/Folhapress

Se Esopo estivesse vivo, provavelmente ficaria com inveja do poder de persuasão de suas lições de moral em 280 caracteres, sem precisar de qualquer subtexto ou animal falante.

Um dos golpes mais clássicos da canceladora, conhecido como flood ou pororoca de chorume, consiste em inundar os comentários e caixas de mensagens de seu alvo com sermões edificantes nos quais as vírgulas são substituídas por ofensas e ameaças.

A inundação transborda também para os perfis de patrocinadores, empregadores, amigos, familiares e qualquer pessoa que ouse defender o cancelado em questão. Assim, ele vai se tornando radioativo e precisará se isolar cada vez mais para não contaminar aqueles ao seu redor.

E, quando as postagens inflamatórias começam a perder o engajamento, um sopro de esperança. O cancelado arrisca um contragolpe, o pedido público de desculpas, a faísca que o motor da canceladora precisava para provar ao mundo que seu alvo é incapaz de aprender com seus erros, apontando mais incoerências em seu discurso.

Afinal, o único diálogo que a canceladora conhece são os botões de "deixar de seguir", "denunciar postagem" ou "bloquear usuário".

No dia em que a turba decidiu cancelar a cultura do cancelamento, nossa anti-heroína não teve escolha, a não ser cancelar a si mesma. Deletou suas redes com a consciência tranquila: "Menos uma hipócrita na internet".

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