Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Marcelo Coelho

'Quase Memória' é um quase delírio

Baseado em livro de Cony, filme de Ruy Guerra retrata dor e escuridão da velhice

Ilustração
André Stefanini/Folhapress

Leia o livro e veja o filme: como se sabe, é uma péssima recomendação. É raríssimo o filme que esteja à altura da obra em que se baseou, e por mais que sejamos ciosos da chamada autonomia da linguagem cinematográfica, sempre existe a necessidade de comparar uma coisa com outra.

Uma boa alternativa é só ver o filme muitos anos após ter lido o livro. Li "Quase Memória", de Carlos Heitor Cony, na época de seu lançamento, há mais de 20 anos. Aparece agora o filme de Ruy Guerra, com João Miguel encarnando o pai do narrador —um jornalista boêmio, fantasioso, livre como um fantasma e infatigável como a mentira, que está entre os grandes personagens da literatura brasileira.

A vantagem não foi só que eu me lembrava de poucas coisas (só tinha a certeza de algumas páginas antológicas, como as que falam dos enormes balões construídos pelo personagem).

Acontece que o filme todo também retrata o esquecimento. Dois personagens (o narrador velho e o narrador aos 30 anos) esforçam-se para lembrar o mesmo pai que tiveram.

O diálogo entre esses dois "eus mesmos", que aliás não prima pela qualidade intelectual dos argumentos, ocupa boa parte de "Quase Memória" de Ruy Guerra, e é filmado num ambiente cor de âmbar, a sala grande e mal cuidada de uma casa com goteiras.

Gostaríamos, provavelmente, de mais luz e nitidez. Contando 84 anos quando fez o filme (em 2015), Ruy Guerra parece ter optado conscientemente pelos tons da velhice.

Lembro-me da casa sempre escura da minha avó, com paredes que nunca eram pintadas, tapetes de flores sépia, a reprodução do "Ângelus" de Millet indiscernível num papel pardacento pendurado em cima do telefone de baquelite, e a luzinha de uma vela votiva para o Sagrado Coração de Jesus. Debaixo de uma manta que tinha sido cor de rosa em 1910, minha avó gemia coisas que eu não eu entendia.

Os marrons de lajota e couro gasto de "Quase Memória" evocam as décadas de 1970 e 1980, e esse também era o tempo em que faziam filmes esquisitos. A ideia era ser autoral o máximo que se pudesse, sobrepondo imagens que não tinham necessariamente a ver com a narração, e mexendo na câmera sem que fosse para passar, digamos, de um personagem para outro da história.

É assim que, logo no começo deste filme, Ruy Guerra filma um pântano fumacento, estaciona diante de um grande sapo cinza e passa adiante, enquanto uma voz em off declama soturnidades sobre o passado e a memória.

Logo em seguida, uma porta de vidro. Um vulto se aproxima. A câmera se joga, com violência, para filmar de perto a maçaneta, e depois repete o movimento para pegar a sombra e os pés do recém-chegado.

Não é difícil encontrar exemplos dessa retórica nos filmes de arte de 40 ou 50 anos atrás. Trata-se de uma certa exasperação do sentido, uma vontade de fazer com que um objeto imóvel "grite" em silêncio, ganhe uma obscura simbologia pela ênfase muda, incomentável, de sua aparição.

Mas esse estilo, a meu ver datado, cai muito bem num filme em que, para o velho narrador ao menos, passado e presente já deixam de ter uma realidade muito nítida; transformam-se em duas modalidades de alucinação.

E as lembranças —divertidas, poéticas, melancólicas— do livro de Cony sobre seu pai surgem então, no filme de Ruy Guerra, com uma nova camada de irrealismo. Já não era fácil distinguir entre verdade e mentira nas conversas, nas desculpas, nos planos e certezas daquele pai, ao mesmo tempo malandro e inocente.

A arte do filme está em fazer com que tudo —a memória do filho e as fantasias do pai— venha recoberto do mesmo absurdo. Personagens reais, como um dono de jornal ou um chefe de estação de trem, surgem caracterizados como personagens de circo mambembe.

Talvez porque o passado sempre nos pareça ridículo e mambembe, na sua precariedade técnica e naquela enorme seriedade que (sabemos agora) tão inutilmente se empenhava em manter.

Talvez porque nossa memória seja também um truque de mágico incompetente, abrindo caixas de cetim encardido e ouro descascado, para que de lá saiam, ou não, as mesmas flores murchas, as mesmas pombas já cansadas de voar.

As personagens de "Quase Memória", adoráveis e muito engraçadas, se sucedem numa espécie de cortejo tropicalista e fúnebre. O delírio, que era exasperado em Glauber Rocha e instrumental no "Macunaíma" de Joaquim Pedro de Andrade, agora dói.

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