Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Assim morrem as utopias. Só que não

Em mostra no Sesc, sonhos modernistas da Rússia de 1918 se desmentem e se cumprem

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Ilustração
André Stefanini/Folhapress

Confiança no futuro? A minha anda bem pequena. Claro que a medicina vai fazer novas descobertas; a alfabetização prossegue e a fome diminui. Logo estaremos livres da dependência do petróleo e, quem sabe, do efeito estufa.

Já em matéria de Brasil não garanto nada. Aquela capa da Economist, mostrando o Cristo Redentor como um foguete levantando voo, já era grotesca quando a publicaram em 2009. Hoje, consta como uma colossal derrapada jornalística.

Pessoalmente, conto assistir a mais uns 20 anos de crise, de criminalidade e desinvestimento. Aí, estarei com cerca de 80 anos e, se estiver errado nesta previsão, já não me lembrarei de tê-la feito.

Mas sempre se aprende com as utopias do passado.

Em 1918, a Revolução Russa já tinha derramado muito sangue, e era ingenuidade achar que tudo não iria dali para pior.

Mesmo assim, é possível encontrar muita coisa simpática e generosa numa exposição atualmente em cartaz no Sesc Pompeia, dedicada à arquitetura e ao design dos primeiros tempos soviéticos.

A mostra atende pelo nome de "Vkhutemas", que é a abreviação em russo de "Ateliês Superiores de Arte e Técnica".

Tratava-se de um conjunto de faculdades destinado a renovar o ensino da arquitetura e do design. Criado em 1918, antecede em um ano a fundação da famosa Bauhaus, de que participaram celebridades modernistas como Paul Klee, Walter Gropius e Kandinsky.

Tudo acabaria em 1930, quando Stálin impôs em definitivo a obediência ao realismo tradicionalista, a serviço da propaganda e da tirania pessoal.

No começo da Revolução Russa, as intenções eram mais amplas e contraditórias.

Os arquitetos procuravam, de um lado, inventar uma nova monumentalidade, feita de aço e vidro, livre das ornamentações antiquadas e da pompa eclética que vigoravam nos edifícios públicos de todas as metrópoles do mundo.

De outro, queriam fazer construções adequadas ao novo modelo social. Habitações coletivas "ensinariam" as pessoas a viver fraternalmente. Clubes operários ajudariam a zelar pela saúde dos trabalhadores, e até mesmo um "palácio do sono", com camas ergonômicas e sons de passarinhos, haveria de garantir total descanso para as massas.

No Sesc, há maquetes e plantas dessas invenções arquitetônicas, que na maior parte nunca foram construídas. Vemos muita coisa antecipando o que seria feito 20 ou 30 anos mais tarde, em Nova York ou no Rio de Janeiro, por exemplo, com o Museu Guggenheim ou o Ministério da Educação e Cultura.

Nota irônica, o criador do (lindo) palácio para o sono coletivo terminou se contentando em ver vitorioso um outro projeto seu, o destinado a abrigar o cadáver de Lênin na Praça Vermelha.

Assim morrem as utopias... A exposição apresenta uma grande quantidade de homens e mulheres envolvidos naquela escola de modernidade. Alguns, mas nem todos, terminaram assassinados pelo terror stalinista.

Talvez muitos tenham escapado porque nem só de vanguardismo era feito o seu ensinamento. Cuidava-se de aperfeiçoar técnicas novas de cerâmica e de estamparia têxtil, por exemplo. Móveis de escritório e roupas "unissex" eram desenhados também.

Serviços de chá com motivos geométricos delicados, cartazes de teatro e cinema, e especialmente os vibrantes tecidos de decoração (que ficam estendidos no teto do Sesc), dão conta do lado mais prático, e menos ambicioso, dos artistas e professores soviéticos.

Tiro disso uma conclusão provisória, e otimista. Reclamamos muito das utopias que se perderam, que foram traídas e que desabaram. Mas esquecemos da alternativa contrária.

Somos ingratos com as utopias que se realizam, pelo simples fato de que se integram à nossa realidade. Produtos de qualidade, baratos, elegantes e "limpos" visualmente, disponibilizaram-se para o consumo de massas.

Nesse aspecto, apesar de muitas distorções, o sonho dos Vkhutemas e da Bauhaus não ficou para trás.

Talvez porque se impôs aos poucos, pelo hábito, pelo "mercado", pela persuasão. A utopia perde quando aposta no autoritarismo. As "casas coletivas" queriam impor um modelo de cima para baixo, fazendo da arquitetura uma pedagogia forçada sobre as massas.

Autoritarismo por autoritarismo, o de Stálin, personalista, místico e retrógrado, tinha bem mais chances de sucesso.

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