Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Infância e decadência da cidade grande

Artista contemporâneo ressuscita as pedras e pontes da Tóquio do século passado

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Duas grandes canoas, cor de papel de embrulho, tentam vencer o mar encrespado; uma delas já está parcialmente encoberta pelas marolas que aparecem no primeiro plano. 

A segunda canoa, a menor, é que enfrenta real perigo. Contra um céu garoento e cinza, levantou-se uma onda monstruosa; sua crista branca parece feita de mil garras de águia, avançando até os homenzinhos
encolhidos na embarcação.

A gravura de Hokusai (1760-1849) acabou se tornando símbolo para todo tipo de catástrofe iminente. Mas não chega a ser aterrorizante. 

Talvez devido ao tamanho das pessoinhas no barco, ao azul encantador da onda e às gotas brincalhonas da espuma, há algo de infantil na imagem. Temos a impressão de que a canoa, apesar de tudo, haverá de sair-se dessa.

Conhecida como “A Grande Onda”, a gravura faz parte de uma série de paisagens retratando o monte Fuji —que, sim, está ali no fundo da cena, azul e branco, quase disfarçado em água do mar, imóvel na comoção geral.

Colagem de ponte vermelha sobre fundo azul, com partes em foto preto e branco.
André Stefanini/Folhapress

A ideia de fazer sequências de paisagens com um tema único foi seguida por outros artistas japoneses, como Hiroshigue (1797-1858), cujas “Cem Vistas de Edo” celebram, na tradição do “ukiyo-ê”, a passagem das estações e a transitoriedade do mundo.

A editora Estação Liberdade acaba de lançar um livro com gravuras nesse mesmo espírito, feitas por um artista contemporâneo. São as “Cem Vistas de Tóquio”, de Shinji Tsuchimochi, algumas das quais publicadas originalmente em revistas e na internet, há quatro ou cinco anos.

A “parte baixa” de Tóquio, diz ele, tem uma atmosfera própria, ameaçada pelo “súbito desenvolvimento urbano promovido pelos Jogos Olímpicos de 1964”.

Ele continua, na sua curta introdução. “Comecei a perceber sutis resquícios das antigas paisagens que já existiram ali. Era como se eu escorregasse por uma fenda temporal e viajasse para o passado.” 

O passado a que ele se refere não é antiquíssimo. Há, por exemplo, um cinema inaugurado em 1952, cortado por fios elétricos capazes de rivalizar com os da bagunça de São Paulo. Antenas de televisão, transformadores de eletricidade, sinais ferroviários, cabines telefônicas, postes de luz querendo cair, prédios baixos de cimento, entre casinholas que bem poderiam ser barracos: a Tóquio de Tsuchimochi não difere da Bela Vista ou da Barra Funda que todo paulistano conhece.

Nunca estive no Japão, mas o que imagino pelas fotos é apinhamento de gente com anúncios de LED em toda parte. Uma mistura tipicamente contemporânea de atropelo e imaterialidade, movida a lítio, iluminada a sódio, multiplicada em terabytes.

As gravuras recuperam o mundo das pontes de cimento, das amuradas de ferro, dos tapumes, dos cercados de madeira e dos toldos de lona. 

Há até uma rua de terra, atulhada de caixotes de papelão; a perspectiva adotada pelo artista abre um largo espaço no primeiro plano, a ser preenchido apenas pelas sombras alongadas da manhã.

O centro de qualquer cidade combina com chuva. À noite, velhos bares, cinemas e hotéis disfarçam sua decadência. Um sebo, um brechó, uma academia de boxe, um beco de bêbados, um posto de bombeiros, uma árvore de cem anos: em cada esquina, cada coisa se consola na particular poesia da feiura.

Não são tristes, contudo, as imagens de Tsuchimochi. Há sempre um adolescente ou uma criança por perto.

E também aparecem, muitas vezes, os fantasminhas, bichos e entidades de que a mitologia japonesa está repleta.

A edição, bilíngue, traz breves explicações sobre o que se passa. O polvo, para os japoneses, é um animal humorístico; ei-lo, de chapéu, no banco de trás de uma velha limusine.

Conhecemos, pelas lojas do bairro da Liberdade, o “gato da sorte”, com seu braço em vaivém; ele surge no alto de uma escada. Encarapitado numa árvore, está o “hitotsume kozo” uma criança travessa, de um olho só, habitual dos cemitérios. 

Coelhos, tartarugas, homens-bola e velhinhos voadores cruzam a cidade desolada. Godzillas, robôs, espíritos malignos e pikachus de boa sorte se descolam da precisão realista do desenho.

Como na “Grande Onda”, a ameaça não é sinistra. Fantasmagoria e riso, declínio e movimento, infância e morte compartilham do mesmo espaço. 

Os antigos símbolos do progresso urbano, os cafés, os cinemas, os hotéis do velho centro, aceitam a visita dos fantasmas, e recuam na escuridão.

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