Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Na corrida pela vacinação, psicólogos e terapeutas entram em surtos

O ser humano, como todo animal, quer sobreviver; às vezes, contudo, entra em jogo a decência pessoal

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Chega uma boa notícia. Isto é, se você for psicólogo. Como profissional de saúde, você pode ser vacinado desde já.

O critério é correto em tese. Há psicoterapeutas na “linha de frente”, prestando assistência a pacientes de Covid nos hospitais. Como os médicos e enfermeiros, eles precisam urgentemente de proteção e se expõem a riscos todo dia.

Só que, segundo tenho notícia, uma febre corre nos grupos de WhatsApp e demais redes sociais. “Chegou vacina para a gente, pessoal.”

Dizem que só mostrando o diploma da faculdade já dá para ser vacinado.

Psicólogos que atendem clientes sem sair de casa, via Zoom, já se preparam para furar a fila.

Desculpem, mas o termo é esse: furar a fila.

O sucesso das terapias pela internet é incontestável, e a ajuda psicológica para adolescentes e adultos em quarentena tem se revelado crucial.

Mas quem atende da própria casa não está na “linha de frente”. Pouco importa! Sou psicólogo! Deixaram que eu seja vacinado! Vou ser louco de não aproveitar?

Os argumentos que tenho visto são preciosos.

silhuetas de idosos em branco à frente e ilustrações de vírus no pano de fundo
Ilustração de André Stefanini para a coluna de Marcelo Coelho de 10 de fevereiro de 2021 - André Stefanini/Folhapress

“Se for vacinado, poderei reabrir meu consultório. Poderei atender melhor meus pacientes e, assim, contribuir para a saúde geral.”

Sim. Do mesmo modo que, se eu for cabeleireiro, manicure, professor de taekwondo, músico e especialista em fazer declarações de imposto de renda, também poderei atender meus clientes
ao vivo e contribuir para o bem-estar da população.

Em alguns casos, nem pela internet é possível trabalhar. Que tal vacinar antes os mecânicos de automóvel?

Estou brincando, mas os coveiros pedem prioridade na vacinação. Foram esquecidos porque são pobres, enquanto Madame Psi, com seu tailleur no estilo Chanel e discreto colarzinho de pérolas, entra no drive-thru da vacinação no estádio do Pacaembu e lê Piaget enquanto espera na fila, reclamando da “confusão insuportável”.

Ah, não se esqueça, sou jornalista. Há décadas escrevo de casa. Mas vai saber. De repente me pedem para fazer uma reportagem sobre um desabamento, uma chacina, uma queimada… Preciso ficar a postos! Quero minha vacina.

Mais argumentos? Já me passaram muitos.

“As doses de vacina perdem a validade depressa. Os postos de saúde acabam jogando fora. Então, melhor eu ganhar a minha do que jogar no lixo.”

Não sei onde, acho que nos Estados Unidos, os encarregados da vacinação se defrontaram com esse problema. Saíram do posto e chamaram o primeiro cidadão que passava na rua. Esse sortudo não estava furando a fila. Não estava ocupando o lugar de alguém que precisava mais da vacina do que ele.

Se o psicólogo acha importante combater o desperdício, sugiro que fique de plantão num posto, e se prontifique a ser vacinado no momento em que estiverem jogando alguma dose fora.

Um momento, diz a doutora Kuka Malatesta, em conversa com seu colega Pelágio Schwarzkopf. “Sou diabética! Tive bronquite na infância! Pre-ci-so des-sa va-ci-na…”

“Hum, hum” (o doutor Pelágio se interessa). “Bronquite na infância… Caso clássico de inveja do seio da mãe.” Mas a doutora Kuka já abandonou a linha pós-kleiniana. Segue recentes pesquisas da neurociência.
“Olha, nessas horas a sobrevivência é o que conta. Mais Darwin, menos Freud.”

E abaixo o superego. O ser humano, como todo animal, quer sobreviver. Um macaco, um bagre, um protozoário furariam a fila se pudessem.

Às vezes, contudo, entra em jogo a decência pessoal. Acredito mais na sanção dos pares: fica feio querer sempre “levar vantagem”. O curioso é que, numa sociedade tão vigiada e sem privacidade, é
fácil encontrar grupos e chats que reforçam a cafajestice.

Não quero exagerar no moralismo. Não sei o que faria numa daquelas cenas de “Titanic”, em que faltam botes salva-vidas. Pisaria no pescoço de um bebê para se salvar? Talvez meu instinto seja esse; se eu me reprimir, talvez seja mais por passividade, por inércia, do que por senso moral.

Mas o psicólogo que ficou atendendo em casa todo esse tempo não corre um risco apavorante. A vacina lhe permitirá sair mais, viajar, ficar mais tranquilo, reabrir o consultório. A bronquite é pretexto.

O colar de Madame Psi tem outras pérolas. “Privilegiada eu já sou. Então, respeitar a fila é hipocrisia.” Já o doutor Bestunto Salvadori se lembra do passado de esquerda: “Não confio nesse governo fascista. Melhor me vacinar antes que o Bolsonaro boicote”.

O Conselho Regional de Psicologia fala claramente, no seu site, que a prioridade é para quem está na linha de frente.

Mas quem é craque na interpretação de sonhos sempre pode tirar outras conclusões.

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