Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Descrição de chapéu LGBTQIA+

Bonecas baladeiras são sinal da atualização das brincadeiras de criança

Barbies mais inclusivas e brinquedos afins passam a mudar o paradigma da menina que brincava de ser mãe

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Uma nova boneca promete fazer sucesso nas vendas de Natal em alguns países, e com certeza logo vai chegar por aqui. Em inglês, chama-se FailFix. A tradução literal seria "desastre/conserto", e funciona do seguinte modo.

A boneca, mais ou menos do tamanho da Barbie, está de penhoar, com a cara toda borrada, e o cabelo de quem acabou de acordar. Parece ter tido uma noite agitada na véspera.

Aí você usa o kit que vem junto na caixa. Não só o cabelo recebe um trato, com pentes ou prendedores, mas há um potinho ou coisa parecida para o tratamento facial. As sobrancelhas são ajustadas, o batom se corrige, não sei se há colírio para tirar aquela vermelhidão da região dos olhos.

ilustração representando dois rostos de bonecos tendo em volta de si diversos itens de beleza
Ilustração publicada em 30 de novembro de 2021 - André Stefanini

Pronto! Ela pode substituir o penhoar por um minivestido matinal, ostentar seu mais saudável sorriso e dirigir-se, com passos firmes na botinha vermelha, para mais um dia de trabalho ou dondocagem.

Como era de esperar, o brinquedo recebeu críticas de alguns setores. Reforça-se, sem dúvida, o estereótipo da mulher bonita e de sucesso, que não passa por ressacas, desilusões, desesperos e diversas noites mal dormidas.

A própria Barbie, modelo de todas as outras, tem sido submetida a um "aggiornamento". Não é mais tão patricinha. A série "Barbie Profissões" providenciou para ela roupinhas de engenheira, de paramédica, até de candidata a cargo eletivo. Talvez falte a de lavradora, por exemplo; mas com reality shows do tipo "A Fazenda" isso não vai tardar.

Do mesmo modo que a maquiagem física, existe a maquiagem ideológica. A rede de fast-food surge um belo dia com um saudável pote de salada; a publicidade do banco mostra o sonho de uma jovem empresária negra. Um dia, quem sabe, a empresa de segurança privada de um supermercado arranjará um bottom "Black Lives Matter" para compor a farda.

Não acho ruim; mesmo sem ser de verdade, maquiagem de fato ajuda.

Para falar então da boneca FailFix. Claro que reforça o estereótipo feminino do rosto perfeito. Bonecos feios, como o Fofão ou o ET, sempre foram tolerados. Mas a boneca feia? Se existe, não é conhecida.
Ocorre que as coisas não são tão simples. Bonecas como a Barbie ou essa da cara em pandarecos representam, acho, um passo à frente.

É que o sentido original e verdadeiro da boneca era outro, nos tempos antigos. A boneca era um futuro bebê; a menina brincava de ser mãe. Fazia batizados, costuras, comidinhas.

Aí residia o verdadeiro estereótipo —assim como o menino com seus soldadinhos de chumbo, a dona da boneca se preparava para um futuro imutável. Cuidava-se do balanço entre o berço e o batalhão, a natalidade e o massacre.

Só que, aos poucos, as bonecas deixaram de ser crianças. Barbie e Suzi, pelo que me lembro, foram as primeiras bonecas adultas.

Com isso, a dona da boneca deixou de ser uma aprendiz de mãe. Brinca de ser mulher adulta e sem filhos.
Com a FailFix, a boneca de ressaca, a boneca maldormida, tem-se um novo grau nesse processo. A menina deixou de cuidar de uma filhinha imaginária; está cuidando da mãe. A criança real é a adulta da brincadeira, e a mãe é seu bebê.

Por que não? Os adultos se infantilizaram muito, afinal. Aos sessenta anos são adolescentes, e chegarão aos cem como bebês de fralda. Logo inventarão bonecas para essa eventualidade também.

As crianças, por sua vez, já se preparam para o poder. O caso de Greta Thunberg é só o começo. Com o futuro do planeta em jogo, o voto das crianças não é tão absurdo assim.

E não me digam que elas não sabem votar. A média dos adultos não será menos irresponsável e crédula.
Quanto ao estereótipo sexista, a solução logo vai aparecer no mundo das bonecas. Já se impõe a criação das bonecas trans. Viriam acompanhadas de um kit cirúrgico.

Um pipiu (des)atarraxável (cuidado, peças pequenas podem ser engolidas) e bisnaguinhas de silicone garantiriam instrução e divertimento à criança do século 21.

Veja como o mundo dá voltas. No meu tempo, as bonecas não tinham sexo. Você tirava a roupinha, e topava com uma estranhíssima falta de respostas; uma superfície plástica neutra, vacante, basal.

Foi um grande avanço quando produziram o primeiro boneco com pintinho. Chegava ao ponto de fazer xixi; mais que isso já não digo.

Hoje, essas ousadias correm o grande risco de passar por atrasadas. Vamos em frente: que as crianças, para começo de conversa, decidam o sexo das bonecas.

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