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Editor, crítico e ensaísta Jacó Guinsburg morre em São Paulo, aos 97 anos

Fundador da Perspectiva, ele dedicou sua vida ao teatro

O professor e ensaísta Jacó Guinsburg em sua casa, em São Paulo, em 2006

O professor e ensaísta Jacó Guinsburg em sua casa, em São Paulo, em 2006 Lenise Pinheiro/Folhapress

São Paulo

Morreu na tarde deste domingo (21), aos 97 anos, de insuficiência renal, o editor, ensaísta e tradutor Jacó Guinsburg. Ele estava internado desde a última sexta no hospital Albert Einstein, em São Paulo. 

Guinsburg foi o último representante da geração de intelectuais das regiões central e oriental da Europa que, ao longo do século 20, vieram ao Brasil para escapar de conflitos políticos ou perseguições e tiveram atuação destacada em nossa cena cultural.

Porém, ao contrário dos outros nomes desse grupo —o austríaco Otto Maria Carpeaux, o alemão Anatol Rosenfeld, o húngaro Paulo Rónai e o tcheco Vilém Flusser, que aqui chegaram já adultos e com sólida formação humanista—, Guinsburg veio com a família aos três anos, na esteira da crise econômica e do antissemitismo crescente na Bessarábia (região da atual Moldávia), onde nasceu em 1921.

Depois de morar em Olímpia, no interior de São Paulo, e em Santos, cidade do litoral paulista onde se alfabetizou, foi no bairro paulistano do Bom Retiro, até hoje um reduto judaico, que Guinsburg teve seus primeiros contatos com a militância estudantil e com o teatro, no período em que o movimento integralista, de extrema direita, mostrava os dentes e dava sustentação ao ditador Getúlio Vargas.

Enquanto trabalhava como jornaleiro, balconista e operário têxtil, com breve passagem por uma loja de couros do Rio de Janeiro, Guinsburg era assíduo frequentador da Biblioteca Municipal da rua Sete de Abril e de livrarias do centro de São Paulo.

Numa delas, conheceu o livreiro Edgar Ortiz Monteiro, com quem fundaria em 1947 sua primeira editora, a Rampa, cujo catálogo era voltado para escritores judeus e para a tradução de obras em ídiche, idioma falado pelos judeus do leste europeu e sua língua materna.

Estava lançada a semente para o maior empreendimento da vida de J. Guinsburg (forma na qual grafava o nome nos livros): a editora Perspectiva. Fundada em 1965, a editora teve como predecessora uma outra de mesmo nome e brevíssima duração, criada dez anos antes e na qual ele editou “O Dibuk”, de Anski, clássico do teatro iídiche.

Teatro, cultura judaica e língua iídiche seriam alguns dos pilares da trajetória de Guinsburg como editor e intelectual. Nesse ínterim, ele se tornou amigo de Anatol Rosenfeld (que aportara no Brasil em 1937, fugindo do nazismo, e escrevia no jornal “Crônica Israelita”) e trabalhou na Difel de Jean-Paul Monteil, célebre editor e fundador da Livraria Francesa, que teria papel heroico durante o regime militar de 1964, ao ajudar pessoas perseguidas pela ditadura.

Foi graças a Monteil que Guinsburg pôde ir à França em 1962, para um estágio de dois anos na área editorial, durante o qual frequentou conferências de Roland Barthes e Lucien Goldmann, além assistir à produção experimental dos palcos parisienses.

Na volta, assumiu a cadeira da EAD (Escola de Arte Dramática) antes ocupada pelo crítico teatral Décio de Almeida Prado, que, ao lado de Sábato Magaldi, seria seu interlocutor constante no campo da dramaturgia. Mais tarde, com a incorporação da EAD à Escola de Comunicações de Artes da USP, Guinsburg obteria os títulos de doutor (sob orientação de Antonio Candido), livre-docente e professor titular, mesmo sem ter título de graduação.

A criação da Perspectiva consolidou essa experiência. Com mais de 1.200 títulos no catálogo, não seria exagero dizer que é impossível encontrar uma tese de pós-graduação na área de humanas, ou mesmo uma bibliografia de curso universitário, que não inclua obras da editora.

Do historiador Fernand Braudel ao linguista Roman Jakobson, da antropóloga Margaret Mead à filósofa Hannah Arendt, todos os campos do saber contemporâneo estão representados por livros fundamentais. Basta dizer que “Mimesis”, de Erich Auerbach (maior clássico da filologia e da literatura comparada), só tem edição no Brasil por obra de Guinsburg e sua mulher Gita K. Guinsburg, cuja formação em física e matemática ampliou o leque da Perspectiva com estudos relacionados à filosofia da ciência e ao positivismo lógico.

E vale lembrar que foi a Perspectiva quem lançou no Brasil a obra ensaística de Umberto Eco, muito antes que “O Nome da Rosa” atraísse a atenção de outras editoras para seus textos teóricos. Aliás, foi o excesso de rigor intelectual (do qual declarou se arrepender) que fez Guinsburg renunciar à prioridade que tinha, como editor brasileiro de Eco, na compra dos direitos de tradução desse romance que viraria best-seller —e que teria garantido por muito tempo a segurança econômica de uma editora que nunca fez concessões comerciais.

A Perspectiva logo se tornou um espaço de encontros entre artistas e intelectuais como os ensaístas Boris Schnaiderman e Roberto Schwarz, a escritora Zulmira Ribeiro Tavares e os poetas Haroldo (morto em 2003) e Augusto de Campos —estes últimos, coordenadores da coleção “Signos”, voltada para a poesia de invenção.

Nem por isso Guinsburg se restringiu ao papel –por si só notável– de dar voz a tamanha diversidade de enfoques estéticos e teóricos. As marcas de suas paixões críticas estão presentes tanto em livros de sua própria autoria –como “Aventuras de uma Língua Errante” (sobre literatura e teatro ídiche)– quanto em coleções com sua curadoria e tradução –caso da obra completa de Diderot.

Nos últimos anos, Guinsburg revelou mais uma face de sua personalidade poliédrica: a de escritor. Em 2000, lançou “O que Aconteceu, Aconteceu” (Ateliê), livro de contos repleto de memórias (e paródias) da cultura e da história judaicas. E neste ano, também pela Ateliê, “Jogo de Palavras” –livro de poesia que, entre o lúdico e o irônico, termina com um poema visual cujas palavras perfazem um círculo que agora, com sua morte, servem de imagem do circuito autor-editor-crítico que Jacó Guinsburg percorreu de modo extraordinário.

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