Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Com Bolsonaro no poder, Brasil não está só na violência e no preconceito

Da invasão do Capitólio ao racismo do húngaro Viktor Orban, a desgraça deixou de ser exclusividade nacional

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Quando aparecia alguma notícia absurda no jornal, as pessoas da minha geração costumavam dizer: "Só no Brasil mesmo".

Para nós, o país era o centro mundial do contrassenso. Só aqui a tragédia se desfazia em batucada, só aqui a incompetência era motivo de orgulho, só aqui subdesenvolvimento alcançava a condição de obra de arte.

Tudo o que tínhamos de descaso, desrespeito, desordem e deboche (para ficar só na letra D) era exclusividade nossa. Acho que, nas últimas décadas, a situação mudou um pouco.

Colagem com três estandartes de carnaval. No primeiro, ao centro, vemos recorte com o sorriso do ex-presidente Trump. No segundo,  o recorte é de um sorriso do presidente Jair Bolsonaro, e no último estandarte temos o sorriso do primeiro-ministro Viktor Orbán
Ilustração publicada em 16 de agosto - André Stefanini

Claro que, como nunca, a violência, o preconceito e a ignorância estão no poder com Bolsonaro. Como nunca, uma horda de imbecis se intoxica com os disparates criados por um bando criminoso —e faz de suas próprias limitações intelectuais, existenciais e morais uma marca de distinção.

É uma espécie de pulseirinha, garantindo a entrada no camarote dos bicheiros, dos milicianos, do genocídio e do crime organizado. A tornozeleira eletrônica virou símbolo do patriotismo e da liberdade de pensamento; é imprescindível, talvez, quando ajuda a disfarçar o fato de que quem a usa trocou os pés pelo casco e pela ferradura.

Mas já não faz sentido dizer que essas coisas "só acontecem no Brasil". Ao contrário, o mais comum atualmente é reagir a esse quadro com a frase inversa: "Não é só no Brasil". Sim, é no mundo inteiro.

Os palhaços que invadiram o Capitólio a mando de Trump serão talvez mais carnavalescos, imagino, do que os bolsonaristas que se preparam para avançar sobre o Supremo Tribunal Federal.

Silvio Berlusconi, na Itália, era mais "brasileiro" do que o bispo Edir Macedo. O húngaro Viktor Orban se mostra tão ou mais racista que a frequentadora do Coco Bambu que destrata o manobrista ou o garçom desprovido de passaporte italiano.

Num plano objetivo, o neoliberalismo, a estagnação econômica e o preconceito contra imigrantes vão encaminhando alguns países desenvolvidos a situações "brasileiras" no que diz respeito aos serviços públicos.

A pandemia colaborou, mas não foi o único motivo, para que o atendimento nos hospitais públicos passe por uma crise inédita no Reino Unido: há quem espere mais de um ano para começar um tratamento de câncer.

A polícia, nos países ditos civilizados, dá mostras de ser tão racista quanto a nossa; mata menos, talvez, mas segue matando. Com a liberação das armas, o Brasil vai se tornando um Texas; com a proibição do aborto, alguns Estados americanos se aproximam do Brasil.

Duas exposições de arte, em cartaz na Tate Britain de Londres, poderiam ser trazidas a algum museu brasileiro sem precisar de nenhuma adaptação.

Nascido na Escócia, mas tendo morado na Guiana Inglesa por muito tempo, Hew Locke montou na galeria uma instalação que parece inspirada num desfile de Carnaval. Sua "Procession" é, na verdade, um cortejo macabro (e lindo) de muitas dezenas de estátuas de negros e negras em tamanho natural, vestindo fantasias coloridíssimas e detalhadas.

Chegando perto de cada uma, ou dos estandartes e carros alegóricos que carregam, o que se vê são documentos, imagens, relíquias da escravidão e do comércio internacional. Caveirinhas negras são botões numa libré dourada; mapas do tráfico formam o turbante de uma passista; títulos da Bolsa de Valores fazem o forro de um manto indígena. Cada uma dessas figuras poderia ter dez páginas de explicação.

No mesmo museu, a escultora Cornelia Parker (que já esteve numa Bienal em São Paulo) usa a linguagem da arte conceitual para se referir aos sinais de uma barbárie tão brasileira quanto americana ou europeia. Foi, por exemplo, a uma fábrica de armas —e recolheu o molde original de uma pistola, no primeiro estágio de sua produção. A peça, "Embrião de Arma de Fogo", traz na sua simplicidade formal o impacto do futuro que está à nossa espera.

Relíquias do tráfico de drogas, do mercado pornográfico e da casa da moeda são retrabalhadas, destruídas, reimaginadas em obras a princípio incompreensíveis e mudas —mas que por isso mesmo ganham força quando se lê sua explicação.

Duas moedas, por exemplo, mostram George Bush e Tony Blair —os responsáveis pela invasão do Iraque—, como se fosse o caso de uma homenagem oficial. Mas eles aparecem de costas na moeda: só o cabelo e a nuca são visíveis.

Indiferença, vergonha, deboche? Não sei. Devem estar olhando para o Brasil também.

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