Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Descrição de chapéu Livros

Escrito há quase cem anos, 'Elmer Gantry' mostra cinismo ainda atual

Livro de Sinclair Lewis acompanha pastor evangélico sem escrúpulos que não tem medo de 'pecar' para enriquecer

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Com tantos pastores e bispos evangélicos dando as cartas no Brasil, é curioso que nenhuma editora, até onde eu saiba, tenha procurado traduzir um romance clássico sobre o tema.

Foi escrito por Sinclair Lewis (1885-1951), o primeiro americano a receber o Prêmio Nobel de Literatura, em 1930. O livro se chama "Elmer Gantry", e deu origem a um filme com Burt Lancaster em 1960.

A história se passa no meio-oeste americano de começos do século 20, e, fora o poder televisivo com que contam os pastores daqui, poderia perfeitamente localizar-se no Brasil de hoje.

A ilustração mostra a fotografia de uma caixa registradora antiga, em tons de amarelo, partida ao meio. Um recorte fotográfico da capa de uma bíblia completa a outra metade.
Ilustração de André Stefanini para coluna de Marcelo Coelho - André Stefanini

Saindo da adolescência, Elmer Gantry é apenas um jogador de futebol americano numa faculdade religiosa obscuríssima; gosta de bebida, porrada e mulher. Acompanha as aulas de teologia sem nenhum interesse. É o sujeito mais popular da escola, possui excelente porte físico, e um vozeirão profundo que disfarça o vazio de sua cabeça.

O sonho da mãe, viúva e sem dinheiro, é que ele vire pastor. O que acaba acontecendo. Ele poderia ser advogado ou vendedor de equipamentos agrícolas. Aos trancos e barrancos, Elmer acaba conseguindo um cargozinho de pregador numa cidade de 200 habitantes.

Naturalmente, ele não se contenta com isso. Ser pastor, no romance, é ter uma profissão como qualquer outra.

O objetivo é subir na hierarquia, conquistando igrejas em lugares cada vez mais importantes. Parte importante das reuniões e seminários se dedica ao tema de como aprimorar as técnicas de arrecadação entre os fiéis.

Como estamos nos Estados Unidos, a qualidade dos doadores é mais importante do que a quantidade. Em vez de conseguir milhões de reais graças ao pinga-pinga dos mais pobres, interessa conseguir o apoio dos poucos que têm muitos dólares no bolso.

Um milionário, por lá, podia perfeitamente ser batista, presbiteriano ou adventista do sétimo dia; imagino que por aqui a realidade é diferente.

Seja como for, o cinismo, a desonestidade, a pilantragem não são diferentes. Elmer descobre, mais adiante em sua carreira eclesiástica, que uma cruzada pelos bons costumes seria o segredo para multiplicar o número de adeptos e o volume de contribuições.

Claro que isso não o impede de "pecar". Com ajuda de jornalistas corruptos, ele abafa seus escândalos sexuais. Hoje, poderiam publicar tudo que os fiéis não acreditariam.

As mulheres são tratadas com grande crueldade no romance de Sinclair Lewis. São abandonadas e acabam se sentindo culpadas por terem cedido aos avanços do pastor —que tem um talento extraordinário para se fazer de vítima quando, na verdade, foi um perfeito canalha.

"Elmer Gantry" não se destaca por sutilezas e ambiguidades machadianas. O personagem é o que é: desonesto, farsante, pronto a trair os amigos e a descumprir com sua palavra.

Isso não deixa de conferir prazer a quem lê o romance. É uma história à moda antiga, um pouco como "A Feira das Vaidades" de Thackeray —de capítulo em capítulo, trata-se de acompanhar as aventuras, sempre espantosas e rápidas, de um herói imoral.

Dois efeitos contraditórios surgem a partir daí. O primeiro é que, quanto mais o livro denuncia o uso da religião como um instrumento para enganar o próximo, ficamos torcendo para que Elmer um dia se converta. Ficamos mais cristãos, quanto menos ele prova ser.

O segundo efeito é que um livro desses não tem, a rigor, como terminar. As estripulias do pastor seguem uma linha ascendente. A morte ou o castigo, assim como o arrependimento e a conversão, transformariam um romance satírico em tragédia, ou em história edificante.

Nem por isso as atividades de Elmer Gantry deixam de ser questionadas. Nesse mundo puramente profissional, os diálogos mais interessantes são os que se travam entre pastores mais liberais, a um passo do ateísmo. Por que não abandonar a igreja? Sim, talvez; mas onde achar emprego?

Para Elmer Gantry, o caso é mais simples. Inventa cruzadas morais, troca de igreja, ou adere a uma espécie de profetisa itinerante, que não pertence a igreja nenhuma. E, se ele passa a comprar carros, joias e casas luxuosas, qual o problema?

Sabe-se lá como, o seu rebanho tira algum benefício dos sermões que ele repete —cheio de menções ao "velho e bom inferno", com fogo e tormentos. Ao fim do dia, o trabalho está feito; que mal há em buscar uma boa remuneração?

Não se trata nem da famosa "teologia da prosperidade". É o modo americano de viver: rumando sempre para o alto, sem que a visão do céu atrapalhe em muita coisa.

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