Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Descrição de chapéu Livros

Livro de Louise Glück imagina pensamentos de crianças que nem falam

Ficção narra trajetória de duas gêmeas que descobrem o mundo e a si mesmas, antes de completarem um ano de idade

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A americana Louise Glück, que ganhou o prêmio Nobel de 2020 por sua extensa obra poética, lançou agora seu primeiro livro de ficção. Chama-se "Marigold and Rose", e é curtíssimo. Não é conto; nem pensar em chamá-lo de novela ou romance.

Na capa, o livro se apresenta como só isso: "uma ficção". Com certeza, é uma ficção mais "ficcional", mais imaginativa, mais "impossível" do que qualquer outra que eu já tenha lido.

Tenho grande antipatia pelos gêneros da "fantasia" ou da ficção científica. Essa coisa de planetas dominados só por mulheres, de regimes totalitários pós-apocalípticos e realidades alternativas me parece chatíssima; saí no meio de "Matrix", e nenhuma máquina do tempo me fará voltar.

Pior ainda, para mim, é o mundo mítico-medieval de "O Senhor dos Anéis" e congêneres, requentando mitos gregos e teutônicos com grande precisão de detalhes —mapa dos reinos, língua dos ogros, alfabeto das fadas, química dos pergaminhos.

A ilustração mostra a silhueta de dois bebês refletidos engatinhando, um laranja e outro verde. ao fundo; linhas abstratas fazem referência a neurônios sob a textura verde.
Ilustração de André Stefanini para coluna de Marcelo Coelho - André Stefanini

É como se o autor pegasse o velho manual de Joseph Campbell, que esquematiza a busca do herói, e tratasse de preenchê-lo com uma obsessiva "imaginação" cartográfica e zoológica.

Bom, isso é problema meu. O livro de Louise Glück, como ia dizendo, "imagina" uma situação absolutamente verdadeira, e ao mesmo tempo de impossível acesso.

Ian McEwan, em "Enclausurado", escreveu um romance a partir da perspectiva de um feto. Mas o enredo envolve dramas adultos.

No livro de Louise Glück as coisas são menos dramáticas. Marigold e Rose são duas gêmeas, descobrindo o mundo e a si mesmas, antes de completarem um ano de idade. O livro termina com a primeira festa de aniversário das irmãs.

Naturalmente, elas não sabem falar. Ou melhor, Marigold —que, tudo indica, será a Louise Glück adulta demora mais para aprender, já que é mais ensimesmada e antissocial. A irmãzinha, Rose, sorri para todo mundo e é mais eficiente em suas atividades infantis.

E, assim, Rose se torna cada vez mais falante. "Bem, não ‘falante’ propriamente", escreve Louise Glück, "já que ela não se importava em dizer palavras. Mas ela estava claramente fazendo alguma coisa muito parecida, muito alto, aos jatos e torrentes. Isso é porque ela gosta de gente, pensou Marigold. Marigold não gostava de pessoas. Gostava do Papai e da Mamãe; a rigor, o restante ainda não tinha sido inspecionado."

O vocabulário é adulto, mas o que ele expressa é algo de pré-verbal e intuitivo. O livro adota, em geral, o ponto de vista de Marigold, para quem a irmã gêmea é uma "terceira pessoa". Há muito ciúme e competição em jogo.

Todavia, as sensações e pensamentos de Rose são algo que Rose ainda não possui conscientemente; é como se uma pessoa adulta "preexistisse" na criança, sem ela saber.

Bem o contrário do que diz a nossa psicologia habitual. Achamos sempre que há uma "criança oculta" dentro de nós, ocupada com nossos desejos mais secretos.

Aqui, há um "adulto interior" em cada bebê; em vez de um id infantil na pessoa crescida, há um ego lúcido na criança que engatinha.

Logo Marigold aprende a subir a escada de quatro. Cada degrau é "inimaginavelmente alto. Bate na cintura. O que ela fazia era esticar os braços até o fim do degrau, e aí, com muito esforço, suspender-se com as mãos e os joelhos. Então ela tinha de se aprumar e começar tudo de novo."

"A vida é difícil", conclui Marigold.

Novo desafio: a mãe volta a sair de casa para trabalhar. "Não foi uma época feliz. Foi a primeira vez em que as gêmeas compreenderam aquela palavra, feliz, porque aquilo não estava mais lá."

As palavras começam de uma ausência. Sem ser ativa e sociável como a irmã, Marigold resolve "escrever um livro". "Que ela não soubesse ler não era um obstáculo. Ainda assim o livro se formava na sua cabeça. As palavras viriam depois".

Pensamentos impossíveis para um bebê, sem dúvida. Mas não será assim que as coisas são? Mesmo adultos, talvez estejamos sempre escrevendo um livro, esperando apenas que as palavras venham mais tarde.

Vendo um bebê começando a falar, o escritor Jorge Luís Borges comentou com seu amigo, Bioy Casares: "A atividade cerebral dessa criança deve ser mil vezes maior do que a de Aristóteles".

Sim, mas podemos pensar o contrário. Talvez o segredo de Aristóteles fosse este: não ter perdido toda a energia mental que tinha com um ano de idade.

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