Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Descrição de chapéu Livros LGBTQIA+

Poemas proibidos de Lorca são reeditados em tempos de Copa e homofobia

'Sonetos do Amor Obscuro' do escritor espanhol parecem aludir a sua sofrida paixão por Rafael Rodríguez Rapún

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Meu boicote não adianta nada, mas vou fazer força para não assistir a nenhum jogo dessa infame Copa do Mundo no Qatar, onde até mesmo uma braçadeira contra a homofobia resulta em punição contra o jogador que inventar de usá-la.

Irrito-me com tudo: as inocentes fotos dos fogos de artifício no estádio Al Bayt, o bonequinho "simpático" com roupa de xeque do petróleo, ar-condicionado a disfarçar o calor que cerca esse camelódromo assassino, os turistas reclamando de não poder tomar cerveja, e a traiçoeira decisão de proibi-la.

O deus-petróleo e o deus-futebol abençoam tudo: cadeia para homossexuais, veto a mãos dadas na rua, obrigatoriedade do véu, qualquer ato e palavra brutal dessas ditaduras de esbanjadores arrogantes.

A ilustração retrata duas mãos ao centro, uma amarela e outra preta, sob fundo vermelho. Amarrando os pulsos, um lenço branco, fazendo referência ao logo da copa do mundo. Vemos sangue saindo dos pulsos ao redor do lenço.
Ilustração de André Stefanini para coluna de Marcelo Coelho - André Stefanini

Menos mal que, com tudo isso, a ocasião vergonhosa constitua ao mesmo tempo um palco para protestos progressistas: as mulheres iranianas não se calam, e a seleção britânica se ajoelha no conhecido ato de repúdio ao assassinato de George Floyd nos Estados Unidos.

Enquanto isso, dando folga temporária aos negros, a estupidez americana massacra gente numa boate gay. Lula está certo: 90% da violência vem da extrema direita hoje em dia. Dos defensores da família e dos valores religiosos.

Desligo a televisão e abro um livro que acaba de ser lançado pela Isto Edições. É uma nova tradução dos "Sonetos do Amor Obscuro", série de poemas do espanhol Federico García Lorca (1898-1936).

Ele foi assassinado pelos adeptos do general Francisco Franco —os bolsonaristas da época— logo no começo da Guerra Civil espanhola. Os partidários da Confederação Espanhola de Direitas Autônomas chamaram-no de "comunista" e "maricón".

O livro, diz o tradutor Ederson Nunes em sua ótima e breve introdução, ficou inédito até 1981, já que Lorca parecia aludir à sua paixão por Rafael Rodríguez Rapún. Há muito sofrimento nesses poemas: Rafael era instável e traía Lorca frequentemente.

"Sonetos do Amor Obscuro" já teve outras traduções para o português, uma inclusive editada pela Folha em 2012, que inexplicavelmente deixei passar.

O volume da Isto Edições traz também, ademais de um "álbum de fotos" e dois artigos, a tradução de outro poema de Lorca dedicado a um rapaz, o "loiro de Albacete" Juán Ramirez de Lucas; pela foto, era muito bonito.

Começo por esse poema, mais abertamente gay que a série de sonetos. As duas primeiras estrofes são um tanto prosaicas e infantis: "Aquele loiro de Albacete/ Veio, mãe, e me olhou./ Eu não posso olhar pra ele!" Não melhora muito quando Lorca diz: "A noite tinge-se e doura-se/ De um delicado fulgor. Eu não posso olhar pra ele!".

Mas aí entra o gênio de Lorca, fazendo com que toda imagem surrealista pareça natural e de fácil compreensão: o rapaz loiro "semeou em minha noite escura/ Seu jasmineiro amarelo".

Coisas assim irrompem nos sonetos, onde a dor do abandono amoroso se torna "um cão no coração". O poeta, como um tronco de árvore abandonado à beira de um rio, espera que seu amado enfeite a água corrente "com folhas do meu outono alienado".

Estão distantes um do outro. Conversando pelo telefone, numa "cabine de madeira", o poeta ouve "uma distante e doce voz amortecida", e diz: "meu choro pendurou pela primeira vez/ coroas de esperança pelo teto".

As imagens são fortes, e raramente, como no último exemplo acima, pedem explicação. Imagino, no caso, que o poeta volta o rosto para o teto da cabine, e que a luz da lâmpada se multiplica em muitos diamantes, "coroas de esperança", porque seus olhos estão cheios de lágrimas.

A forma estrita dos sonetos, que o tradutor nem sempre optou por manter rimados, contrasta com as súbitas explosões de modernidade nas metáforas. A poesia de Lorca costuma ser assim, oscilando entre a contenção e o grito, nunca estridente, mas fundo, breve, irreprimível, ao mesmo tempo doloroso e feliz.

No "Soneto da Grinalda de Rosas", a separação entre os amantes é "ar de estrelas e tremor de planta". "Essa grinalda!", pede o poeta, "rápido, que já morro!"

Ele continua: "Aproveita a fresca paisagem da minha ferida,/ quebra os juncos e os arroios delicados,/ bebe em coxa de mel o sangue vertido".

É isso mesmo. O sangue de Lorca continua a derramar-se.

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