Meu boicote não adianta nada, mas vou fazer força para não assistir a nenhum jogo dessa infame Copa do Mundo no Qatar, onde até mesmo uma braçadeira contra a homofobia resulta em punição contra o jogador que inventar de usá-la.
Irrito-me com tudo: as inocentes fotos dos fogos de artifício no estádio Al Bayt, o bonequinho "simpático" com roupa de xeque do petróleo, ar-condicionado a disfarçar o calor que cerca esse camelódromo assassino, os turistas reclamando de não poder tomar cerveja, e a traiçoeira decisão de proibi-la.
O deus-petróleo e o deus-futebol abençoam tudo: cadeia para homossexuais, veto a mãos dadas na rua, obrigatoriedade do véu, qualquer ato e palavra brutal dessas ditaduras de esbanjadores arrogantes.
Menos mal que, com tudo isso, a ocasião vergonhosa constitua ao mesmo tempo um palco para protestos progressistas: as mulheres iranianas não se calam, e a seleção britânica se ajoelha no conhecido ato de repúdio ao assassinato de George Floyd nos Estados Unidos.
Enquanto isso, dando folga temporária aos negros, a estupidez americana massacra gente numa boate gay. Lula está certo: 90% da violência vem da extrema direita hoje em dia. Dos defensores da família e dos valores religiosos.
Desligo a televisão e abro um livro que acaba de ser lançado pela Isto Edições. É uma nova tradução dos "Sonetos do Amor Obscuro", série de poemas do espanhol Federico García Lorca (1898-1936).
Ele foi assassinado pelos adeptos do general Francisco Franco —os bolsonaristas da época— logo no começo da Guerra Civil espanhola. Os partidários da Confederação Espanhola de Direitas Autônomas chamaram-no de "comunista" e "maricón".
O livro, diz o tradutor Ederson Nunes em sua ótima e breve introdução, ficou inédito até 1981, já que Lorca parecia aludir à sua paixão por Rafael Rodríguez Rapún. Há muito sofrimento nesses poemas: Rafael era instável e traía Lorca frequentemente.
"Sonetos do Amor Obscuro" já teve outras traduções para o português, uma inclusive editada pela Folha em 2012, que inexplicavelmente deixei passar.
O volume da Isto Edições traz também, ademais de um "álbum de fotos" e dois artigos, a tradução de outro poema de Lorca dedicado a um rapaz, o "loiro de Albacete" Juán Ramirez de Lucas; pela foto, era muito bonito.
Começo por esse poema, mais abertamente gay que a série de sonetos. As duas primeiras estrofes são um tanto prosaicas e infantis: "Aquele loiro de Albacete/ Veio, mãe, e me olhou./ Eu não posso olhar pra ele!" Não melhora muito quando Lorca diz: "A noite tinge-se e doura-se/ De um delicado fulgor. Eu não posso olhar pra ele!".
Mas aí entra o gênio de Lorca, fazendo com que toda imagem surrealista pareça natural e de fácil compreensão: o rapaz loiro "semeou em minha noite escura/ Seu jasmineiro amarelo".
Coisas assim irrompem nos sonetos, onde a dor do abandono amoroso se torna "um cão no coração". O poeta, como um tronco de árvore abandonado à beira de um rio, espera que seu amado enfeite a água corrente "com folhas do meu outono alienado".
Estão distantes um do outro. Conversando pelo telefone, numa "cabine de madeira", o poeta ouve "uma distante e doce voz amortecida", e diz: "meu choro pendurou pela primeira vez/ coroas de esperança pelo teto".
As imagens são fortes, e raramente, como no último exemplo acima, pedem explicação. Imagino, no caso, que o poeta volta o rosto para o teto da cabine, e que a luz da lâmpada se multiplica em muitos diamantes, "coroas de esperança", porque seus olhos estão cheios de lágrimas.
A forma estrita dos sonetos, que o tradutor nem sempre optou por manter rimados, contrasta com as súbitas explosões de modernidade nas metáforas. A poesia de Lorca costuma ser assim, oscilando entre a contenção e o grito, nunca estridente, mas fundo, breve, irreprimível, ao mesmo tempo doloroso e feliz.
No "Soneto da Grinalda de Rosas", a separação entre os amantes é "ar de estrelas e tremor de planta". "Essa grinalda!", pede o poeta, "rápido, que já morro!"
Ele continua: "Aproveita a fresca paisagem da minha ferida,/ quebra os juncos e os arroios delicados,/ bebe em coxa de mel o sangue vertido".
É isso mesmo. O sangue de Lorca continua a derramar-se.
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