Marcelo Leite

Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

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Marcelo Leite
Descrição de chapéu drogas

A droga da verdade

Portugal é exemplo de descriminalização do uso de substâncias proibidas e tem obtido resultados notáveis

Semanas atrás esta coluna entrou em controvérsia com o ministro do Desenvolvimento Social, Osmar Terra (MDB-RS), sobre como avançar em estratégias para lidar com o drama da dependência química. Defendeu-se aqui que concebê-la como doença passou a fazer parte do problema, não da solução.

O ministro, adepto do conservadorismo proibicionista, discordou. Atribuiu as mortes causadas por drogas no Brasil à política de redução de danos e prescreveu abstinência e repressão como remédio para o “holocausto” e a “epidemia” das drogas.

Frequentadores da igreja católica Nossa Senhora do Perpétuo Socorro em Manila, nas Filipinas, observam fotos expostas de vítima de 15 anos morta na guerra as drogas promovida nas Filipinas pelo presidente Rodrigo Duterte
Frequentadores da igreja católica Nossa Senhora do Perpétuo Socorro em Manila, nas Filipinas, observam foto de vítima de 15 anos morta na guerra as drogas promovida nas Filipinas pelo presidente Rodrigo Duterte - Vincent Go/Folhapress

Dizendo apoiar-se em fatos, afirmou que “a violência e o número de dependentes marginalizados diminuíram em todos os países que atuam com rigor contra o comércio e o consumo de drogas”, mas não os apresentou para corroborar a afirmação.

Na tréplica, assinalei que os milhares de mortos na guerra às drogas no México e nas Filipinas contradiziam a tese do emedebista. Havia, contudo, um contraexemplo melhor, o de Portugal, cuja política de descriminalizar o uso (mas não o tráfico) de substâncias proibidas tem obtido resultados notáveis, lá, e pouca atenção, aqui.

Reparo agora essa omissão reproduzindo um sumário de avanços conquistados em nossa antiga metrópole a partir de 2001, quando a descriminalização se implantou em associação com políticas generosas de redução de danos que o correligionário de Michel Temer deplora.

O resumo foi compilado pela ONG Drug Policy Alliance (DPA):

Entre 1998 e 2011, o total de dependentes químicos portugueses em tratamento subiu de 23.600 para 38.000. Mais de 70% receberam terapia de substituição de opioides (como heroína).

O número de infecções com HIV, muitas desencadeadas pelo compartilhamento de seringas, caiu de 1.575 (ano 2000) para 78 (2013), e o de casos sintomáticos de Aids, de 626 para 74 no mesmo intervalo.

Mortes por overdose despencaram de 80, em 2001, para 16, em 2012. Estima-se que 25 mil portugueses utilizem heroína, hoje, contra os 100 mil da época em que a política de drogas foi reformada.

Em 1999, 44% dos encarcerados em Portugal cumpriam penas por delitos relacionados com drogas. Essa parcela caiu para 24% em 2013.

No Brasil, a Lei de Drogas adotada em 2006 pretendeu reduzir o punitivismo e revogou a pena de detenção de seis meses a dois anos para usuários anteriormente prevista, substituindo-a por advertência sobre os efeitos dos entorpecentes, prestação de serviços à comunidade e obrigação de comparecer a programa educativo.

A mudança não logrou, porém, conter o encarceramento de usuários, que passaram a ser enquadrados como traficantes por policiais e magistrados que pensam como Terra. A quantidade de presos por tráfico subiu de 9% do total em 2005 para 28% em 2014. No caso das mulheres, a parcela saltou para 64% das presidiárias.

A descriminalização, ao menos da posse de drogas, tem apoio até do ministro Gilmar Mendes, que não pode ser acusado de esquerdista nem de ingênuo.

Quem se opõe com unhas e dentes contra ela em geral o faz por oportunismo político, para atender ao senso comum e angariar votos conservadores. A verdade que se dane.

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