Existem muitas formas de rebaixar mulheres que obtêm sucesso e reconhecimento em ambientes predominantemente masculinos, como a pesquisa científica. Uma delas consiste em retratá-las como coitadas, apadrinhadas ou vítimas de homens mal-intencionados.
Malevolência e manobras machistas existem, aos montes. Mas isso não quer dizer que toda mulher de destaque alcançou o topo, ou foi impedida de lá chegar, por interferência masculina.
A ministra Cármen Lúcia deixou isso bem claro, em sessão do TSE, na carraspana que aplicou ao companheiro de toga Kassio Nunes Marques. O ministro havia falado em "abandono" de candidatas do sexo feminino por seus partidos, e Cármen Lúcia estrilou.
"Entendo quando Vossa Excelência afirma, de forma que soa quase paternal, que é preciso ter empatia", condescendeu a ministra. E mandou esta: "Quando se fala que o partido abandonou, como outrora se dizia que o marido abandonou, coitada... Não queremos ser coitadas, queremos ser cidadãs iguais."
No universo da pesquisa correm muitas histórias de mulheres cujos feitos foram diminuídos, ocultados, ou não tiveram o reconhecimento devido. Uma das mais famosas é a de Rosalind Franklin, codescobridora da estrutura da molécula de DNA, que teria sido injustiçada pela história da ciência.
Físico-química e especialista de mão cheia em cristalografia por raios-X, ela deu contribuição decisiva para James Watson e Francis Crick chegarem ao modelo da dupla hélice. No entanto, só os dois homens são autores do artigo de 1953 na revista Nature que apresentou a figura icônica para o mundo.
Na versão que se fixou, Franklin teria sido traída por Maurice Wilkins. Seu colega no King’s College, ele teria mostrado a Watson, do Laboratório Cavendish, a célebre imagem 51 de Franklin, sem seu consentimento, e com a chapa de raios-X a charada teria sido resolvida.
Em 1962, Watson e Crick (W&C) ganharam o prêmio Nobel por desvendar a estrutura, dividindo-o com Wilkins, não com Franklin. Foi o quanto bastou para prosperar a versão de que a pesquisadora havia sido injustiçada.
Pouca gente sabe que na mesma edição da Nature havia três artigos relacionados com o DNA. O de W&C, claro, mas também um de Wilkins e outro de Franklin, assinados com outros colaboradores. Ou que a pesquisadora nunca se perfilou como prejudicada, ou ainda que se tornou amiga próxima do casal Odile e Francis Crick.
Tampouco se destaca o fato de que W&C admitem em seu artigo terem sido estimulados pelos resultados e ideias gerais dela e de Wilkins. Raramente se menciona que o Nobel jamais é conferido postumamente (Franklin morrera de câncer em 1958, aos 37 anos).
Na Nature de 25 de abril passado, aniversário de 70 anos da dupla hélice, Matthew Cobb e Nathaniel Comfort, biógrafos de Crick e Watson, respectivamente, apresentaram novos documentos e elementos para desfazer a narrativa da Franklin coitada. Vale a pena ler.
Segundo os historiadores, ela nunca se queixou porque sabia do trânsito de informações entre o King’s e o Cavendish. Mais ainda: ela só não teria concebido a dupla hélice por não se aplicar como W&C a montar modelos tridimensionais da molécula, com inúmeras versões corrigidas à luz de informações que Franklin, Wilkins e outros cientistas aportavam.
Deixar de retratar Franklin como vítima em nada diminui a brilhante carreira dessa pesquisadora, numa época e num meio avessos a mulheres, nem sua real contribuição para desvendar a molécula de DNA. Só a engrandece.
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