Se eu ganhasse um real a cada vez que alguém me diz "nunca me dei bem com a matemática, eu sou de humanas", eu estaria muito bem de vida!
Na verdade, os avanços recentes das neurociências mostram que ninguém nasce "de exatas", nem "de humanas": o cérebro humano é supreendentemente plástico, e são as vivências dos anos iniciais, antes mesmo da escola, que influenciam a sua receptividade à matemática na idade adulta. Informação crucial para pais e responsáveis...
Mas há outra coisa que me incomoda na dicotomia exatas/humanas: o fato de que ignora as inúmeras conexões entre essas duas facetas do conhecimento. Por isso, acho muito gratificante, entre outras coisas, constatar com que frequência a matemática é mencionada na literatura, mesmo que o leitor nem sempre se dê conta. Os exemplos abundam: já escrevi sobre alguns aqui, mas estou aprendendo sobre muitos outros.
O inglês Lewis Carrol (1832–1898) era professor de matemática. Assim, não surpreende que suas obras "Alice no País das Maravilhas" e "Alice do Outro Lado do Espelho" estejam cheias de paradoxos matemáticos desconcertantes. "Vejamos: 4 vezes 5 é 12 e 4 vezes 6 é 13 e 4 vezes 7 é... Nossa! Desse jeito nunca chegarei a 20!", lamenta-se Alice. Mas não é um mero jogo de contradições: "Alice" também é uma sátira à matemática, que estava ficando mais abstrata, com conceitos como números imaginários e geometrias não euclidianas que o conservador Carrol repudiava.
Em "Cândido", célebre obra satírica do pensador francês Voltaire (1694–1778), a menção à matemática é irônica, como seria de esperar. A Academia de Ciências de Bordéus oferece um prêmio para quem explicar por que a lã da ovelha de Cândido é vermelha. E o prêmio é dado "a um sábio do Norte que demonstrou por A mais B menos C dividido por Z que a ovelha tinha que ser vermelha e morrer de varíola".
Mas no monumental "Os Irmãos Karamázov", do russo Fiódor Doistóievski (1821–1881), a matemática toca os próprios fundamentos da existência. "Você precisa notar o seguinte: se Deus existe e se Ele realmente criou o mundo, então, como todos sabemos, Ele o criou de acordo com a geometria de Euclides, e a mente humana com a concepção de apenas três dimensões espaciais", afirma Ivan Karamázov. E continua: "No entanto, houve e ainda há geômetras e filósofos, inclusive dos mais renomados, que duvidam que o universo e, de modo mais amplo, o conjunto da existência, tenha sido criado apenas na geometria de Euclides. Eles se atrevem até a sonhar que duas retas paralelas, que segundo Euclides nunca se cruzam neste mundo, podem se encontrar em algum lugar no infinito".
Continuarei na semana que vem.
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