Marcos Lisboa

Economista, ex-presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005, governo Lula)

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Marcos Lisboa

Mas ouve o meu lamento

Mortes de Dona Ivone Lara e Paul Singer merecem bandeiras à meia altura

Dona Ivone Lara tinha 96 anos. Paul Singer, dez anos menos. Ambos se foram na última semana. Ambos merecem bandeiras à meia altura.

A primeira-dama do samba simboliza o país que podíamos ser e que desperdiçamos. Órfã, foi criada por tios em meio às rodas que congregavam famílias e transmitiam a herança de uma cultura celebrada com música às margens de uma sociedade hierarquizada e desigual.

O tio ensinou-lhe a tocar cavaquinho. Desde cedo, seu talento foi reconhecido, mas dedicou-se integralmente aos sambas que nos comovem apenas depois de aposentada. Ela enfrentou com elegância o preconceito contra mulheres no samba. Deixou-nos “Acreditar”, “Candeeiro de Vovó” e muitas outras.

Havia precedentes. Clementina de Jesus só no fim da vida foi reconhecida pelo seu canto bruto, sofrido e arrebatador.

A Pequena África era uma região do Rio de Janeiro que recebeu negros libertos no fim do século 19. Trabalhavam de dia e cantavam de noite. Os descendentes de escravos retribuíram ao país bruto preservando a música que ofereceram  para nos redimir dos nossos pecados.

Pixinguinha frequentava a Pequena África e mudou a nossa música com seus choros e valsas. O homem de trato simples era incrivelmente sofisticado. Falha nossa ter demorado a reconhecer o seu impressionante talento. O tio de Dona Ivone tocava em roda com Pixinguinha.

Houve também os filhos de imigrantes, sobreviventes da brutalidade, que se somaram às muitas mãos que inventaram a música brasileira. Jacob do Bandolim talvez tenha sido o melhor.

Jacob foi o filho acidental de uma judia polonesa, refugiada no Brasil depois da primeira guerra. Reza a lenda que ele dizia que o choro teve três gênios: Pixinguinha, depois Pixinguinha e, por fim, Pixinguinha. Ele morreu de infarto depois de uma visita ao mestre.

O incomparável Jacob preservou um imenso arquivo do choro e nos legou músicas como “Santa Morena” e “Assanhado”. Em semana de luto, talvez seja apropriado resgatar a sua gravação de “Lamentos”, composta por Pixinguinha.

Paul Singer era judeu austríaco e imigrou com sua mãe no começo da Segunda Guerra, fugindo da violência do nazismo. Grato, dedicou-se a contribuir com o seu país de adoção. Pode-se criticar as ideias de Singer. Jamais as suas intenções.

Convivi brevemente com ele no primeiro governo Lula. O velho professor discordava de muito do que propúnhamos, mas ouvia e encontrava pontos em comum. Recordo-me da sua serenidade e abertura à divergência. Com gentileza interminável, ajudou-nos a construir soluções.

Devemos agradecer ao legado de muitos filhos de imigrantes que retribuíram com generosidade o que receberam em violência.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.