Marcos Lisboa

Economista, ex-presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005, governo Lula)

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Marcos Lisboa
Descrição de chapéu yanomami

Uma história de ouro e sangue

A tragédia dos yanomamis começou há tempos, e os culpados podem surpreender os leitores desavisados

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A tragédia da violência contra os yanomamis tem despertado, finalmente, indignação e solidariedade. São muitos os mortos, incluindo crianças.

Os yanomamis são o grupo mais frágil e visível de uma tragédia anunciada. Esta coluna conta uma parte dessa história, que, apesar de anunciada repetidamente, foi ignorada no debate público. Os garimpos ilegais de ouro, incentivados por adendos em uma lei aprovada há uma década, contribuíram para um aumento da violência que vitimou muita gente.

Vista de garimpo em território indígena Yanomami, ainda em 2021; ocupação foi se alastrando sem que autoridades se organizassem para deter invasores - 24.05.21 - Christian Braga/Greenpeace

As taxas de homicídio aumentaram cerca de 20% nas áreas indígenas e de proteção ambiental na Amazônia com jazidas de ouro, a partir de 2013. Esse brutal crescimento da violência decorreu da adição de alguns artigos em uma lei que nada tinha a ver com o problema, mas que terminou por facilitar o garimpo ilegal do ouro. O resultado foi um massacre.

Nas regiões em que o garimpo é ilegal passaram a ocorrer muito mais homicídios por ano, cerca de 8 a cada 100 mil habitantes, em comparação com as áreas onde ele é permitido desde 2013.

Trata-se de um número expressivo. Para se ter uma noção do malefício, esse aumento é cerca de três vezes o total anual de homicídios por 100 mil habitantes que ocorre na Ásia e na Europa. No caso de São Paulo, uma alta de 8 homicídios por 100 mil habitantes significaria mais do que dobrar a taxa anual do estado.

Como acontece com frequência, o diabo decorreu dos detalhes.

Em 2013, o governo Dilma promulgou uma medida provisória (MP) que tratava do Programa Garantia-Safra, destinado a agricultores familiares em municípios com queda de safra, por excesso ou carência de chuvas.

Na tramitação dessa MP, o Congresso inseriu adendos que nada tinham a ver com o tema proposto. Foram muitos os jabutis, entre eles quatro artigos que alteraram as regras e obrigações para o transporte e a venda de ouro.

Até então, os pontos de compra de ouro (PCOs), que são os típicos compradores na Amazônia, tinham que verificar a procedência do que adquiriam, pois seriam responsabilizados em caso de comercialização de ouro ilegalmente extraído.

Com os adendos na lei de 2013, os PCOs passaram a poder comprar ouro com a presunção de boa-fé. Eles podiam presumir que os garimpeiros não estavam mentindo sobre a procedência do ouro. Se fosse caso de extração ilegal, os compradores não seriam responsabilizados.

Uma segunda alteração na lei permitiu que outras pessoas, além dos garimpeiros, pudessem vender ouro. Bastava que elas fossem de alguma forma provedores de serviços para a extração do ouro, como pilotos de avião, comerciantes de alimentos ou vendedores de equipamentos.

Leila Pereira e Rafael Pucci estudaram os impactos dessas mudanças utilizando microdados detalhados da Amazônia no artigo "A tale of gold and blood". Eles analisam a evolução das taxas de homicídio em municípios com até 200 mil habitantes, separando-os em dois grupos.

De um lado, estão os municípios com jazidas de ouro em reservas indígenas ou áreas de preservação, em que o garimpo é proibido. De outro, estão aqueles em que se pode extrair ouro.

Eles testam, com as boas técnicas da econometria, como se comportaram as taxas de homicídio nos dois grupos depois da aprovação da lei de 2013, e os resultados mostraram que, nas regiões em que o garimpo é ilegal, o número de homicídios cresceu cerca de 8 por 100 mil habitantes por ano, em comparação com o que foi verificado onde o garimpo é permitido.

Pereira e Pucci identificam muitos outros resultados, como o aumento da devastação da floresta nessas regiões. Boa sorte a quem tentar rebater o resultado desses pesquisadores.

A menor responsabilidade dos que compram o ouro irregular estimulou o garimpo ilegal. O resultado foi a violência dos conflitos que surgem quando alguém ocupa terras que não lhe pertencem.

Larissa Rodrigues, do Instituto Escolhas, documentou a impressionante teia de empresas dos principais compradores de ouro no Brasil.

As estimativas de Rodrigues sobre o ouro extraído no Brasil são perturbadoras: mais de 50% são de fontes ilegais. Parte vem das áreas de preservação, parte vem de áreas onde há autorização, mas não há indício de extração. Em alguns casos, os dados indicam extração para além do legalmente permitido.

Os PCOs são regulados pelo Banco Central. Ao contrário das demais instituições financeiras, contudo, eles não devem verificar a origem do que compram. Bancos, por exemplo, são obrigados a investigar se os recursos depositados por seus clientes têm origem legal. Caso haja dúvida, devem reportar para o Coaf. Nada semelhante ocorre com os PCOs.

Para garantir a transparência, devo dizer que sou presidente do Insper até março deste ano, onde Pereira e Pucci foram alunos de doutorado e agora são pesquisadores (comuniquei minha decisão de sair em setembro do ano passado). E sou membro do conselho do Instituto Escolhas (sem remuneração).

Pelo mesmo princípio, devo esclarecer que o autor dos adendos na lei 12.844 de 2013 foi o deputado federal Odair Cunha, do PT de Minas Gerais. Esses adendos na lei foram incorporados pelo relator da MP no Congresso, senador Eunício Oliveira (PMDB-CE).

Em nenhum desses dois casos deve-se argumentar culpa por associação. Melhor analisar os dados e as evidências para identificar os responsáveis pelo descalabro.

Mas não vamos esquecer que a história de ouro e sangue da Amazônia foi ampliada em 2013 com os adendos inseridos na lei 12.844 (artigos 37 a 41). Revogá-los será um passo para interromper essa tragédia.

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