"O mundo está cada vez mais desigual. Os dez maiores bilionários possuem mais riqueza que os 40% mais pobres da humanidade", disse o presidente Lula em seu recente discurso na Assembleia-Geral da ONU, quando enfatizou a ameaça que a crescente desigualdade, em escala global e nacional, representa para a democracia.
O aprofundamento da "dissonância entre o mercado e a rua", tema imperativo de nosso tempo, vai atingindo, se é que não atingiu, um ponto de não retorno. Estamos num cenário em que uma casta altamente acumuladora de poder econômico e político vive em sua bolha Maria Antonieta, de costas para os que disputam senhas para a fila quilométrica que talvez chegue ao portão da festa.
Essas assimetrias projetam-se sobre diversos aspectos da experiência social e política, entre os quais o futuro dos regimes democráticos ocidentais, cuja estabilidade e ambições universalistas vão sendo sabotadas em casa e em seus quintais. As revelações que se acumulam sobre as tramoias golpistas do bolsonarismo não nos deixam esquecer o terreno minado em que pisamos.
Não percamos muito tempo, porém, com a memória instagramável de golpes de Estado em preto e branco, com seus generais de óculos escuros a comandar pelotões de baionetas e tanques recauchutados para cercar palácios e depor governantes eleitos.
Como se sabe, apesar dos nostálgicos, essa chanchada sinistra já saiu de cartaz. Agora é a vez de uma outra tragichanchada, encenada no verso e no metaverso da política contemporânea, por atores como Bolsonaro, Netanyahu, Trump ou Milei, obcecados em matar as democracias por dentro.
Os novos autocratas, em diferentes nuances, alimentam-se do rancor das massas que se sentem trapaceadas pelo iluminismo retórico do liberalismo democrático, com as pernas quebradas pela desigualdade. É a revanche dos despeitados com o "sistema", visto como decadente e licencioso.
Na ONU, Lula acenou à esquerda ao afirmar que a extrema-direita brota dos escombros do neoliberalismo. Faltou lembrar a contribuição dos tropeços de políticas progressistas desfocadas do universalismo e das aspirações do mundo do trabalho precarizado.
No plano global, o ressentimento contra o Ocidente liderado pelos EUA e seus "protegés" europeus tem matizes variadas, num contexto de ascensão de potências geopolíticas e países de renda média, alguns seletivamente relegados a "párias", que dificilmente —à diferença de Lula— subiriam a púlpitos para saudar a democracia. Muitos, aliás, em suas formações históricas, jamais experimentaram sistemas democráticos, embora tenham conhecido o colonialismo ocidental.
Pode ser dramático, mas é forçoso reconhecer que a maior parte das populações do imenso Sul Global —algumas, aliás, beneficiadas pelo desenvolvimento, como ocorre na China— não parece fortemente mobilizada por uma agenda de "laissez-faire", "checks and balances" e "free speech".
Algum tipo de novo contrato social, que contemple o aumento de oportunidades e a redução da desigualdade, seria bem-vindo se conseguisse se estender às franjas cada vez maiores empurradas para fora do pacto civilizatório democrático.
Lula não tem bala para liderar o Sul Global —e tem um caminhão de problemas a resolver por aqui. Seu discurso na ONU pode ser impotente diante dos fatos, mas foi ao ponto. O Brasil tem peso econômico relativo, soft power, democracia revigorada e bons ativos para se fazer ouvir.
Seja como for, não há dúvida de que tivemos sorte em não assistir, em nome do país, a mais uma bufonaria macabra de Jair Bolsonaro, com seu séquito de zumbis golpistas.
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