De um lado a cobra, de outro uma mulher grávida.
De um lado, um animal que ameaça, ataca e pode estraçalhar. De outro, uma mulher que engendra um ser.
De um lado, um símbolo fálico banal, a masculinidade clássica, o poder, a violência. De outro, a vida em sua vulnerabilidade e insistência.
Tenho pena da cobra.
Há meio século, uma jovem mulher grávida foi colocada num lugar fechado e escuro com uma cobra. A cena fazia parte de um ritual de tortura: ritual em que uma pessoa, nesse momento com muito mais poder, faz uso dele para trucidar o corpo e a mente de alguém com menos poder. Isto é, uma pessoa covarde se engana a si própria buscando parecer mais forte na exata medida em que se permite executar o máximo de mal para outra. É um dispositivo real e cênico vil, talvez das cenas ritualísticas menos animais que os humanos souberam inventar —no sentido de que os humanos ainda não alcançaram o nível de evolução dos demais animais, o de se abster do puro gozo sobre outro ser vivo.
Há meio século a estrutura patriarcal —calcada num ideário de privilégio, portanto não democrática— já estava em crise. Mas quanto mais ela balança e se depara com outras possibilidades de ordenação de mundo (outros jeitos de ser homem e de ser mulher, e também rico e pobre), mais surgem demandas explícitas para se botar ordem no coreto. Aí, para escapar de fantasmas de caos, invasão e desequilíbrio, faz-se apelo a um imaginário de disciplina e força. Era a ditadura, que de branda tinha pouco.
Seguimos na mesma crise e engendramos a mesma resposta nostálgica padrão. Mas estudamos melhor o fenômeno, como Rachman no recente "The Age of the Strongman" —a era do homem forte, como o culto do líder ameaça a democracia no mundo. Multiplicam-se tais líderes mundo afora, na linha dita dura, esbanjando imagem de potência e agressividade.
Quanto mais fica claro que não existe essa ficção chamada "Homem Forte", mais ficamos desesperados. O Forte é somente o verniz imaginário do "Homem Violento" —no fundo todo homem é mortal, levemente patético e sempre tem medo. Como assim não vai ter um grande pai para me salvar? Que mundo é esse que afunda numa decadência sem volta? Ei Alexa, cadê meu emprego, meu lugar e meu futuro? O que está acontecendo que não me reconheço mais em nada? Cadê o grande líder que vai dar um jeito definitivo em tudo isso de mal e corrompido que está aí?
Preciso, de qualquer jeito, acreditar que alguém sabe localizar o problema (no inimigo) e resolvê-lo (destruindo o inimigo). Aí acredito nesse super-herói e dou tudo o que tenho para acreditar nele (dízimo, voto, minha vida, minha mente). Mas passa um ano, dois, três, 20, ele não resolve nada e só piora tudo. O que faço então? Duas saídas: caio na realidade ou dobro a aposta. Cair na realidade significaria fazer o luto da narrativa de grande líder, homem forte, bem x mal, herói x bandido. Cair na realidade dói e dá muito trabalho psíquico. E ainda resta o problema de como fazer para de fato transformar a tal realidade. Teria essa história de democracia, debate, discussão, negociação, frustração e todas essas palavras que terminam do mesmo jeito e dão muito trabalho.
Então o que fazer? Sim, abro mão de mais uma parte de minha própria capacidade mental e me encho de fé. Fico cada vez mais infantil, desejando muito, muito que dessa vez vai funcionar. Que o homem forte, violento, escroto e folgado consiga vencer o mal (e salvar o país).
Não está funcionando? Mente. Mente mais. Camufla. Comete mais um crime. Ainda não? Dá uma debochada. Ixi, nem assim? No fundo tá morrendo de medo? Isso, machão. Dobra a aposta.
—Kkkkkkkkkk.
Tenho, definitivamente, pena da cobra.
Sua era está por um triz.
(Escrevo da cidade de Milão, onde nasceu um homem que não era desse tipo e que admirei; e onde penduraram de ponta cabeça em praça pública aquele que se dizia o condutor dos fascistas.)
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