Maria Homem

Psicanalista e ensaísta, com pós-graduação pela Universidade de Paris 8 e FFLCH/USP. Autora de "Lupa da Alma" e "Coisa de Menina?".

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Maria Homem
Descrição de chapéu Mente

A persona do líder

Estamos à altura do debate público e racional de ideias? Parece que preferimos a revista Caras do poder

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Vivemos atualmente vários tipos de guerra. Um deles é um tipo peculiar que poderíamos chamar de guerra simbólica. Os símbolos que identificam uma tribo entram em conflito com os de outra, e um coletivo cultural advoga que seu conjunto de interpretações da realidade e, portanto, de diretrizes para a vida, é superior ao do outro grupo.

O conjunto simbólico-imaginário que nos permeia —as narrativas, as imagens, as normas— não é sem consequências sobre o real que ele busca decifrar (por isso que a liberdade de expressão plena não se sustenta, aliás, e pode engendrar crimes).

Por exemplo, a forma de conceber a natureza, divina ou desfrutável, implica uma posição de temor ou dominação. Se suponho que o planeta é "recurso natural", busco extrair dele tudo o que eu puder. Vou concebendo-o como objeto de uso e abuso, e exploro-o até o talo.

Sanna Marin, primeira-ministra da Finlândia, em discurso no qual defendeu seu 'direito à alegria' em meio a críticas após a divulgação de vídeos em que dança com amigos - 24.ago.2022/AFP

O mesmo tipo de diferença está em jogo quanto aos "recursos" chamados humanos. Qual o limite da exploração? Mais opressão ou mais poder de decisão aos que trabalham?

Outro tipo de debate: como conseguir dinheiro? Ou seja, como e onde coletar imposto, como e onde abrir mão disso; ou seja, taxação e subsídio. E como distribuir o tesouro.

Como encaminhar esses problemas? Não estamos falando de coisas menores e sim de como lidar com a destruição, a desigualdade e o desenho do Estado. Como? Pensando. Trabalhando. É fundamental estar numa tessitura de interlocução racional para se fazer esses cálculos e saber, afinal, o que é melhor fazer. Em qual direção seguir.

A ilustração de Luciano Salles, publicada na Folha de S.Paulo no dia 28 de Agosto de 2022, os pés de uma bailarina. Toda ilustração é tem tons de magenta. O pé esquerdo na ilustração calça uma sapatilha de ponta. O pé direito está sem a sapatilha. Este pé, sem a proteção da sapatilha, revela a pressão que o peso do corpo exerce sobre os dedos que estão vermelhos, machucados, quase esmagados. O pé sem a sapatilha tem três pequenos curativos. Um pequena poça de água, suor ou outro líquido se deposita logo abaixo do dedão e do dos dedos seguintes.
Luciano Salles

No entanto, como vimos estes dias, estamos ainda em uma etapa do debate que não se faz prioritariamente com ideias e projetos. Ele se faz em torno do que intuo sobre a pessoa do líder e da guerra de imaginários daí decorrente. Depois da entrevista de um deles na quinta, dispararam menções e buscas por seu nome. Vamos dizer que ele se chama Pedro. O top 5 das buscas foi esse aqui:
Atual esposa de Pedro. Paulo falando mal de Pedro. Quantos anos tem Pedro. Pedro teve câncer. Pedro casou de novo.

A vida amorosa e desejante do líder vem em primeiríssimo lugar, e com duas entradas. Separar e recasar, sabemos, é uma conquista histórica recente, que valoriza a ética do desejo individual em detrimento da lealdade ao pacto primário de alianças comunitárias. Um proponente separou e recasou três vezes, sempre com mulheres mais jovens. Pedro, viúvo, casou de novo este ano em cerimônia midiática. O que deve lhe conceder um frescor glamourizado. O velho interesse pelo corpo do líder: idade e câncer. Isso é relevante, pois nosso herói é um vencedor: venceu a pobreza, a prisão e a doença.

A outra pergunta é mais explicitamente política, mas ainda no âmbito da política privada da intriga. Quero ouvir falarem mal dele. Aquilo que todos fazemos cotidianamente, dos bares aos salões, dos quartos ao zap. Antigos inimigos podem fazer alianças? O próprio líder deu a resposta: sim, devemos nos unir aos divergentes para vencer o antagonista.

No século 20, notícias que quebravam a rotina —breaking news— buscavam destrinchar quais atrizes ou estagiárias eram amantes de quais homens poderosos, à la Kennedy, Clinton e tantos outros. Chama a atenção como, hoje, com o planeta podendo explodir em guerra ou desequilíbrio, ainda estejamos nos perguntando sobre como vive um homem ou como bebe e dança uma líder mulher. Sempre a vida privada a nos seduzir.

Voltando ao início: estamos à altura do debate público e racional de ideias? Vivemos em uma real República? Parece que preferimos a revista Caras do poder, mergulhados no imaginário da persona do líder. E gastando fortunas em guerras culturais não tão inteligentes. Temos problemas seríssimos para lidar e ainda estamos na fase personalista do play.

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