Mariliz Pereira Jorge

Jornalista e roteirista de TV.

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Mariliz Pereira Jorge
Descrição de chapéu

A maternidade real me fará desistir de ter filhos

Minha ausência de dom para gerar um ser pode ser só instinto de sobrevivência

Mulher acaricia barriga de grávida
Mulher acaricia barriga de grávida - Fotolia

Há anos eu espero que o dom de ser mãe brote de algum lugar muito especial e misterioso, de onde nascem os sentimentos mais puros, singelos e altruístas de um ser humano que decide não mais ser o reizinho de seu umbigo e de suas carências. Esperei. Esperei. Nada.

Ouvia um tanto encantada e outro tanto intrigada quando amigas e conhecidas falavam do sonho da maternidade como se tivessem sido agraciadas com algum chip especial que estava em falta quando fui concebida. Nada que me fizesse ter vontade de perpetuar um “mini-me” para adorar e mostrar ao mundo. Copular desde sempre serviu apenas para garantir os prazeres da carne.

Então, disseram que o relógio biológico tremeria tal qual as trombetas do apocalipse e como eu não havia recebido o “chamado” por bem, seria agora por mal, quando meu corpo começa a definhar, não apenas em forma de bunda caída e peitos murchos, mas também por dentro, e a maternidade passa a ser tão possível quanto comer muito sem engordar.

Nada. Nem uma vontadezinha de leve. Nem à base da chantagem biológica acordei sonhando que minha vida seria enfim realizada se eu gerasse um serzinho. Tentei acreditar que uma mulher só é completa depois de parir, como dizem. Que não há amor maior no mundo. Talvez, mas há coisas que já amo demais, incluindo poder ver um episódio atrás do outro da minha séria favorita e não vinte vezes as aventuras de Peppa Pig.

Meu marido até pouco tempo também achava que nossa relação seria ainda melhor se a gente completasse a cartela desse bingo familiar. Gato, cachorro, passarinho, filhos. Bingo. Mas foi ele quem falou algo que mudou minha percepção e eu comecei a achar que os sininhos jamais tocarão, não porque sou insensível, apenas prática.

“Nossos amigos que não têm filhos parecem mais felizes do que a maioria dos que tem”, me disse. Ontem pela manhã, me marcou num post com fotos de casais antes e depois da maternidade. Assustador. Se ele queria me convencer a desistir do que nem mesmo tenho certeza se quero, ganhou pontos.  

O que mais me aterroriza, no entanto, é a tal da maternidade “real”. As redes sociais revelaram a parte amarga de colocar filhos no mundo. Depois que as mães resolveram contar sem filtro o que vivem no dia a dia, penso que talvez a minha ausência de “dom” seja apenas instinto de sobrevivência.

São nove meses de cansaço, enjoo, sono, dor na lombar, tesão zero. Depois disso, é a eternidade de cansaço, sono, dor na lombar, tesão zero, mais falta de tempo. Mães não têm tempo para nada. Para dormir, comer, tomar banho, lavar o cabelo, ler, ver TV, dar uma voltinha. “Não tenho tempo nem para coçar a bunda”, parece um mantra, não é mesmo?! Acho admirável como elas conseguem, eu não tenho tal destreza e muito menos disposição. E de tudo o que leio e observo, a maioria dos homens parece se tornar os seres mais inúteis do mundo. Não participam, não assumem tarefas, não ajudam. Sexo? O que é sexo?

Admiro quem saiba de tudo isso e ainda assim decida ir em frente. Talvez eu seja apenas covarde, porque é preciso muita coragem para ter filhos mesmo ciente de que a vida pode ficar um pouco mais complicada. Ou mesmo uma grande merda.

Ouvi que é um tanto egoísta não querer ter filhos e continuar, que horror, usufruindo uma vida na qual posso tomar banho, conversar, ficar de ressaca, sem pensar em mais ninguém a não ser nos gatos que já me aborrecem o suficiente quando andam sobre minha cabeça às 6h da manhã, querendo ser alimentados.

Quem vai cuidar de vocês quando ficarem velhos? Nunca havia imaginado que um profissional de saúde não fosse suficiente, que eu teria que colocar no mundo alguém pensando que lá no futuro aquela pessoa se sentirá na obrigação, se não afetiva, moral, de trocar minhas fraldas geriátricas. E eu sou a egoísta?

Mesmo assim, veja só como as pessoas, eu, são loucas. Ainda não consigo me decidir. Vez ou outra me pego olhando famílias (aparentemente) felizes, penso que seria uma boa mãe, que ninguém precisa ser feliz assim o tempo todo, que filhos valem o sacrifício.

Então, alguém me chama para um drink no fim de tarde, um jantarzinho no meio da semana, uma viagem inesperada. E eu sempre posso. Gasto todo dinheiro com coisas fúteis e não com a escola trilíngue, o curso de natação, de balé e de robótica. Que maravilha.

Meu casamento poderá ter muitas crises, menos a do pai-decorativo. Ter ou não ter? Então, lembro da conversa com uma amiga que me disse, depois de alguns drinques. “Amo meu filho, mas não tenha, não”.

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