Mariliz Pereira Jorge

Jornalista e roteirista de TV.

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Mariliz Pereira Jorge

2020: o ano em que sobrevivemos

Passei a desejar saúde no final de cada vídeochamada ou em mensagens por WhatsApp. Em reuniões de trabalho, para conhecidos e estranhos

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Sempre achei que desejar saúde a alguém no dia de seu aniversário ou em datas festivas era coisa de gente antiga. Quase no fim de 2020, me dei conta que passei o ano fazendo só isso.

Ao porteiro, às 7h da manhã, ao entregador de pizza, que me ajudou a me entupir de carboidratos e ficar menos louca, ao motorista do Uber, ao caixa do supermercado, o único lugar que frequentei na fase em que abracei o isolamento radical.

Não era desejo protocolar, da boca pra fora, sem intenção. Não eram apenas palavras que encerram conversas ou marcam despedidas. Eram votos reais de que o interlocutor tivesse saúde física e mental para enfrentar o medo, a doença, a solidão, o desemprego, a falta de esperança.

Passei a desejar “saúde” no final de cada vídeochamada ou em mensagens por WhatsApp. Em reuniões de trabalho, para conhecidos e estranhos.

Há alguns dias, completei mais um ano de vida e percebi que em poucos meses me tornei o que mais temia: uma tia velha que se preocupa com o bem-estar alheio.

Vi no meu reflexo, meus pais e avós, repetindo que ter saúde é o que importa na vida. Mas ela é um bem garantido quando se é jovem. Já tenho saúde, eu pensava, quando os ouvia. Eu queria sucesso, dinheiro, amor, viajar de classe executiva.

E, então, passei 2020 desejando, não só para mim, mas para a humanidade, a saúde que, de repente, nos pareceu tão frágil.

Pode ser também que eu esteja apenas madura e tenha entendido o básico: sem saúde física e mental estamos lascados. Ou talvez seja só egoísmo: querer que todos tenham saúde e que o mundo volte ao “normal” e que eu não tenha que me preocupar nem com a minha própria.

Mas algo mudou. Eu, que sempre debochei de gente que fala gratidão e abraça árvore, senti profundo amor por essas pessoas que são tão encantadas com as coisas simples da vida e têm a capacidade de parar no meio da correria para apreciar borboletas.

Num passado pouco distante, sentiria preguiça. Hoje, quero ser uma delas. Foi neste 2020 horrendo, o primeiro ano em que pensei diariamente em como é bom viver.

Nesta manhã, fiquei na janela, admirandos os biguás no céu, em sua característica formação em V. O mar estava revolto, o céu nublado, que nem combina tanto com esta cidade que é muito mais viva em dias ensolarados. Mas achei tudo lindo e perfeito.

Fiquei um tempo apenas admirando a vida da fora, como se visse tudo pela primeira vez. Ou última.

Neste 2020, que parece não acabar nunca, dei tanta atenção às minhas plantas que elas decidiram parar de morrer, certamente muito impressionadas com minha dedicação. Elas só precisam de água e sol na medida certa, mas talvez eu estivesse ocupada demais com coisas desimportantes para perceber isso.

Neste 2020, o ano em que aprendemos a fazer bolo, tricô e tie dye, mas que no fundo apenas sobrevivemos, ainda acho que a humanidade não sairá transformada dessa experiência de morte.

Não seremos mais solidários do que já éramos. Mas quem termina este ano, tem ao menos uma grande alegria: a de estar vivo. E, de alguma forma, com saúde.

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