Mariliz Pereira Jorge

Jornalista e roteirista de TV.

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Fábio Porchat está errado no caso Leo Lins?

Em relação à censura, digo que, de boas intenções, o inferno está cheio

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Não sabia quem era Leo Lins até ontem. Talvez porque não consuma esse tipo de produto que ele chama de humor. Assim como eu, agora outros milhões de pessoas passaram a conhecer o seu trabalho. Mais do que humorista, ele parece um tio do pavê piadista, turbinado pelo poder das redes e pelo conteúdo de profundo mau gosto, no qual não poupa ninguém.

A discussão sobre a decisão judicial que tirou do ar vídeos produzidos por ele ficou restrita a acusações de racismo, mas sobra para todo mundo: judeus, mulheres, deficientes, crianças, doentes terminais, nordestinos, mortos em tragédias. Tem pedofilia, transfobia, gordofobia. É impressionante que ele tenha tantos seguidores, que encha shows.

O que ele faz tem muito mais a intenção de chocar e de ofender do que divertir, talvez seja essa a explicação. Vão aqui algumas "piadas": "preconceito é igual índio, não deveria nem existir"; "cachorro é igual filho com leucemia, um compromisso de 15 anos"; "agora não escraviza mais negro, escraviza boliviano, traz uma flautista pro pokemon tocar"; "se tem feriado da consciência negra, quarta-feira de cinzas deveria ser feriado dos judeus".

Alguém achou isso engraçado? Não, não é. É só um amontoado de preconceitos rasos com uma retórica de quinta série dos anos 1980. Falo isso sem nenhum moralismo, porque consumo muita coisa que foi cancelada, como Ricky Gervais e Dave Chapelle. Com a diferença de que o humor desses dois é inteligente e sofisticado, embora seja, sim, considerado ofensivo por muita gente.

Léo Lins, humorista
O humorista Léo Lins - Léo Lins no Instagram

Tipos como Leo Lins deveriam desaparecer não por meio de censura, mas por falta de público. É o que tem acontecido no humor, que se transforma, se atualiza à medida que o público deixa de achar engraçadas coisas que no passado eram alvo de piada por preconceito e ignorância. De todos nós.

Eu tenho muitas dúvidas sobre o poder educativo que a proibição de um show como o de Leo Lins tem sobre as pessoas que frequentam seus shows. Vai mudar alguma coisa? Não é uma pergunta retórica. A impressão que tenho é que o que muda a sociedade é o fim de estereótipos, quando deixamos de enxergar pessoas e situações com os olhos impregnados de preconceitos.

O que me interessa nesse episódio Leo Lins é a reação de uma parte da sociedade ao tuíte do humorista e apresentador Fabio Porchat em que defende a liberdade de expressão no humor. Porchat pode estar errado na defesa que fez, mas a violência contra a sua opinião me parece muito, mas muito mais errada. Inclusive porque essa reação não vale para todo mundo.

No final de abril do ano passado, o então presidente Lula disse que "o mundo está chato pra cacete" e que "todas as piadas agora viraram politicamente erradas". As declarações foram feitas num encontro com influenciadores e mídia independente. "Nós não queremos um mundo unipolar, em que só pode estar na mesa um pensamento, uma tese. Não. Nós queremos um mundo multipolar, que tenha 500 pessoas discutindo na mesa. Aí, sim, a gente vai ter um mundo feliz. O cara contando piada de nordestino, e eu rindo. Eu contando piada de outras pessoas, e as pessoas rindo."

Jair Bolsonaro já disse coisas parecidas. É um crítico ferrenho do politicamente correto. Fosse ele o protagonista desse episódio, o mundo teria vindo abaixo. Ao contrário, não houve manifestações de repúdio. Nem de eleitores nem de políticos de esquerda. Apenas os ciristas aproveitaram para demonstrar seu desdém ao petista. Lula não deve ter perdido um voto. Eleitores progressistas, defensores da censura de piadas de mau gosto, engoliram bem quadrado a defesa do petista de "ofender" em nome da liberdade de pensamento e de um mundo menos chato.

Vamos lá. O mundo não está mais chato. Movimentos sociais são necessários para que direitos sejam garantidos e que a sociedade seja justa para todos. Mas tem um problema, sim. Os excessos constantes do identitarismo. Não vejo a menor graça na ridicularização de mulheres, negros, gays, da condição física ou da origem de alguém. Mas gostos pessoais não podem servir de régua moral; é a lei que faz isso. O que acaba com a intolerância e muda o conceito de piada é a educação, a inclusão e o tempo. Rir de piada de nordestino já deu. Assim como parece óbvio que piadas racistas não são piadas.

Não vi em nenhum momento Fabio Porchat defendendo esse tipo de humor. Sua defesa foi sobre a liberdade de expressão. E são coisas muito diferentes. Qualquer pessoa pode defender o direito de outra de dizer coisas absolutamente impróprias pela bandeira da liberdade. Quem se coloca nesse papel tem a ingrata missão de se manifestar pela defesa do direito de ofender. E de tempos em tempos posa ao lado de imbecis, raivosos, mal-educados, racistas, misóginos, não porque os apoia, mas por uma causa maior, que é repudiar todo tipo de censura.

De tudo o que eu tenho assistido no Porta dos Fundos, fica evidente que o humor que o Porchat abraçou não tem nada a ver com o do Leo Lins. Quem o acompanha nas redes sociais sabe que ele sempre foi um aliado das causas importantes, incluindo a luta antirracista. É uma covardia apontar o dedo e tratar seu comportamento antes desse episódio como um grande fingimento. Mas é isso que o identitarismo sempre faz quando alguém ousa dizer qualquer coisa que não obedeça a cartilha. Quem perde? Os próprios movimentos sociais, que têm um aliado apedrejado de todos os lados. Adivinhe quem mais está batendo em Porchat? A galera de direita que acha bem feito que ele seja escorraçado por essa esquerda identitária. Mas além dessa militância raivosa, o que assusta é ver gente razoável que se fecha para o debate e levanta o punhal do sacrifício.

Porchat está errado? Na visão de muitas pessoas, sim. Por que, então, não focar o debate nas questões levantadas por ele? Porque essas pessoas não querem o debate. Porchat pode não estar errado e nem mesmo cometendo um crime, como tem sido apontado. Ele pode apenas pensar diferente de você sobre os limites do humor e da liberdade de expressão, sobre o que determina o que pode ser considerado ofensa ou não. Posso discordar dele sem transformá-lo nesse mostro no qual as pessoas querem pintá-lo.

Ofensa é uma coisa subjetiva. Podemos fazer uma lista do que cada um considera insulto. Se organizar direitinho, censuramos todo mundo. Os assassinos dos cartunistas do Charlie Hebdo não gostavam das piadas com religião. Vocês percebem? Eles poderiam reclamar, abrir um processo contra o Charlie Hebdo, mas a linha que separa uma reclamação de um processo ou de uma chacina fica cada vez mais tênue, pois há ofendidos de sobra.

Vocês já ouviram falar sobre ética da reciprocidade? Trate os outros como gostaria de ser tratado. É a ética da reciprocidade que deveria pautar o comportamento, e não ameaça de prisão. Quem ofende diz mais sobre si do que sobre o outro. Infelizmente a liberdade de expressão tem um custo, que é o de conviver com idiotas, preconceituosos e maus-caracteres. A ideia de um mundo limpinho, só com gente elegante, não é apenas utópica, mas perigosa. Ainda é preferível lidar com a estupidez a ceder a qualquer autoritarismo. Nos últimos anos, muito do que escrevi sobre políticos foi considerado ofensivo e criminoso por seus apoiadores. Leis que proíbem o pensamento livre são perigosas porque um dia nos "protegem" de algo que repudiamos, mas que lá na frente podem nos transformar em alvo do nosso próprio desejo de repressão. Leo Lins está impedido pela Justiça de sair de São Paulo sem autorização judicial e deve se apresentar às autoridades para prestar contas de suas atividades, uma vez por mês. Entendo que haja quem concorde com essa punição e que se sinta vingado. Para mim é tão eficaz quanto enxugar gelo.

O público do Leo Lins pensa como ele, mas eu acredito mesmo que a mudança na sociedade vem pela educação, não pela repressão. Essas piadas grosseiras e preconceituosas vão durar mais quanto tempo sem que caiam no ridículo inclusive para os fãs do tal humorista?

Concordo com Porchat quando ele diz que não existe censura do bem. Discordar dele sobre os limites do humor é totalmente válido, debater é saudável, temos a chance de aprender e crescer. Agora, tratar o cara como um criminoso e tentar calá-lo com uma ação intimidatória nas redes sociais, escrever textão sugerindo que ele seja racista, é uma tentativa de censura, mesmo que as intenções sejam as melhores. Como a gente sabe, de boas intenções o inferno está cheio.

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