Mariliz Pereira Jorge

Jornalista e roteirista de TV.

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A geração das mulheres amedrontadas

Ao ver tantas moças amedrontadas, percebo que o patriarcado venceu

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O mundo é um lugar perigoso para as mulheres, não há dúvida. É só dar uma olhada nas estatísticas que nos dão dezenas de motivos para nos paralisar. Mas a última onda do feminismo –que veio, felizmente, como um tsunami— chegou para nos amparar para que tenhamos mais força, consistência e coragem para enfrentar todas as estruturas que empatam a nossa vida.

Tenho lido muitos relatos de mulheres que se sentem invadidas, acuadas por falas, atitudes, olhares, o que me despertou uma mistura de empatia, pena, mas também preocupação, incômodo, dúvidas sobre o real impacto do movimento feminista na vida das novas gerações que parecem incapazes de se defender. Parecem vulneráveis como crianças desamparadas, não mulheres adultas cientes de seus direitos e de sua existência.

Por ignorância ou por distração, minha geração foi criada no tranco para enfrentar um mundo ainda muito pior que o de hoje, com alicerces fincados numa estrutura machista, cheia de armadilhas, perigos e desigualdades. Talvez meu privilégio esteja aí —além de ser branca, fui educada para ignorar todas essas coisas e não ter medo de nada. Não era uma opção, dadas as condições financeiras da minha família. Era isso ou isso. Todas as mulheres que me foram referência tiveram que trabalhar para ajudar nas contas, isso quando não eram responsáveis por todas elas. Cresci com esse modelo. Empoderadas muito antes de a palavra definir um comportamento.

Caminhada contra o machismo em Santiago, no Dia Internacional da Eliminação da Violência contra a Mulher - Martin Bernetti - 24.nov.23/AFP

Estudar, trabalhar, viajar, namorar, fazer esportes, beber, dançar, dirigir. Tive que assumir a responsabilidade e os riscos das minhas escolhas, sabendo que tem um mundo hostil lá fora. Nos últimos anos, o feminismo me despertou a consciência de que apenas exerci o que me era de direito, que não foi concessão do "patriarcado". E, ao entender que sempre estive no lugar certo, ficou muito mais fácil peitar as violências de gênero que, acredite, sempre vão existir, sem deixar que me paralisem.

Viajo sozinha desde a adolescência, quando meus pais me botavam dentro de um ônibus para visitar meus avós, viagem que poderia levar umas oito horas. Numa época sem celular, sem redes sociais, sem tantos alarmes em relação aos perigos do mundo, sem estatísticas assustadoras. Não sei se por sorte ou distração, tenho poucas lembranças de ter sentido medo de minha integridade como mulher. Uma das raras vezes foi em Barcelona. Estava hospedada num apartamento no bairro Gótico e resolvi voltar sozinha de madrugada depois de passar a noite dançando numa boate. Fui assediada na rua por um homem que correu atrás de mim, pelas vielas escuras. Consegui me trancar no edifício, enquanto ele esmurrava a porta. Foi uma cena de filme, mas a tentativa de violência foi real.

Apesar disso, o medo não é uma opção, porque o contrário seria não viver plenamente. E viver plenamente exige coragem e um tanto de cinismo. Sofri machismo, assédio, misoginia? Que dúvida?! Ou você ignora, ou peita, ou sofre. Encaro olhares que tentam ser ameaçadores, peito marmanjos com mãos bobas, ironizo chefes misóginos. Faço uso do meu maior privilégio, que é a informação, o que nem todas têm, além de não terem voz. Penso nas mulheres de classes menos favorecidas e sua luta diária. Teria vergonha de me colocar nesse lugar de desamparo e de fragilidade, quando o machismo faz vítimas reais.

As novas gerações têm se mostrado assim, parecem ter medo de tudo. De violência, de relacionamentos, de sexo, da maternidade, do envelhecimento, de viver. Queria eu, aos 20 ou 30 anos, ter acesso a quantidade de informação que as mulheres têm hoje sobre desigualdade de gênero, abusos físicos e emocionais, sobre o direito de não ser, não fazer, não ceder. Lamento que as mais jovens sofram tanto, apesar de tão mais bem informadas para a vida que as gerações anteriores, que sequer contavam com leis que garantissem, ao menos na teoria, um pouco de proteção.

O efeito desse levante feminista dos últimos 15 anos parece ter sido o contrário do esperado em jovens adultas, que seria mais consciência, preparo e coragem para exigir que o mundo seja mais justo e gentil. Pode reparar, a palavra empoderamento caiu de moda, graças à Deusa. Infelizmente, a atitude também. Ao ver tantas moças amedrontadas, percebo que o patriarcado venceu.

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