Mariliz Pereira Jorge

Jornalista e roteirista de TV.

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Mariliz Pereira Jorge
Descrição de chapéu Todas saúde mental

Quem não está doido está medicado

Perdi o preconceito depois de cair na lorota de que depressão se trata com força de vontade, meditação e kombuchá

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Encontrei um grande amigo que não via desde dezembro. Estava magro, corado e com o ritmo de quem fumou um baseado ou comeu um cogumelo, o que está mais na moda. Transmitiu uma paz tão grande que quase fiquei entediada. Quis saber o nome do santo porque o milagre era visível.

Antidepressivo, disse com o sorriso que, hoje, só tem quem está medicado ou drogado, o que pode significar a mesma coisa.

Tenho sempre vontade de abraçar forte alguém que se entregou ao remédio e dizer que vai ficar tudo bem, quando eu mesma não tenho certeza se vai. Mas sem eles eu já estaria doida. Com a graça —ou desgraça— da indústria farmacêutica perdi o preconceito depois de cair na lorota de que depressão se trata com sol, força de vontade, meditação e kombuchá.

Cartelas de remédios estão sobre uma mesa
Apenas dois em cada 10 pacientes que tomam antidepressivos apresentam sinais de melhora - Freepik

Tudo o que consegui foi ter vontade de vomitar só de ouvir falar nessa bebida tão hypada que hoje custa uma caixa de antidepressivo, mas não tem nem efeito placebo neste caso. O intestino recuperou sua alegria, mas meu cérebro continuava um deserto de serotonina.

Que bom que meu amigo deixou seus dias cinzentos para trás, até porque está fazendo 40°C no Rio e sofrer com calor é muito pior, não cola a desculpa de que está chovendo ou fazendo frio e a vida não nos deixa abraçar a melancolia em paz.

O Rio tem disso, a gente se sente meio obrigada a ir lá fora ser feliz porque os dias estão lindos. O problema é que meu peito andou nublado durante um tempão e até agora não sei se foi só tristeza, depressão, menopausa, medo do futuro.

Eu achava que só eu vivia um cansaço eterno que não passava nem depois de 14 horas de sono, mas agora tenho a impressão de que todo mundo parece meio doido. Quem não está doido está medicado.

Como ninguém mais fala de política quando se encontra, agora falamos de remédio, até porque discutir o país foi o que deixou todo mundo fora da casinha nos últimos anos. Felizmente, o tema foi banido das mesas de bar, agora falamos de outras drogas, mas isso também não é bom.

O leitor dirá que perdi o juízo porque todo mundo ainda continua sequestrado pelas notícias. Só nas redes sociais e na caixa de comentários dos jornais. Nos almoços, na areia da praia, nas festas do Leme ao Pontal, o que está bombando mesmo é trocar impressões sobre antidepressivos, ansiolíticos, remédios pra TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade), para emagrecer, para dormir, para não dormir, para ganhar massa muscular, para estimular o colágeno, para não ter escape de urina.

Não sei se é exagero, mas quem sou eu para julgar a falta de neurotransmissores alheia, ou se a vida resolveu elevar o nível do jogo da crueldade e nos deu um pacote extra de intolerância, egoísmo e desumanidade para ter que lidar.

E encarar tudo isso, mais uma tonelada de informações, responsabilidades e compromissos, parece ter ficado impossível sem uma pílula colorida —bem, sempre com a devida indicação médica. Como a vida é de escolhas, uma conhecida disse que abandonou o tratamento para bipolaridade para poder parcelar o Ozempic. Pelo menos estou magra, disse.

Nem todo mundo está medicado, mas muita gente está doida.

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