Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Mario Sergio Conti

Nada em Temer nunca surpreende

Tales AbSáber analisa a estirpe dos homens medíocres do poder político

O psicanalista e ensaísta Tales Ab’Sáber é ambicioso. Ele se propôs a investigar a psique do ex-presidente Lula à luz do poder que se constituiu ao seu redor. Achava que, assim, daria para avaliar o significado “de um governo de esquerda de pleno mercado” no mundo contemporâneo.

Nesse espírito, publicou em 2011 “Lulismo, Carisma Pop e Cultura Anticrítica” e, quatro anos depois, “Dilma Rousseff e o Ódio Político”. Com muita semiótica, psicanálise e teoria crítica, os livros destrincharam a nova cena política sem recorrer ao ramerrão das certezas confortáveis.

O projeto foi abortado pela gente de bem que tomou a avenida Paulista. Ab’Sáber reagiu à gosma verde-loura com “Intervenção – Amor Não Quer Dizer Grande Coisa”, que dirigiu com Rubens Rewald e Gustavo Aranda. O filme deu voz a cidadãos que pagam impostos direitinho.

Os seus cartazes na Paulista diziam: “O PT adora o Diabo. Quer fechar todas as igrejas porque não acredita em Deus” e “Dilma devia ter sido enforcada na Oban”. Na língua franca do mundo livre, uma faixa suplicava: “Army, Navy and Air Force: please save us from communism”.

Se tivesse visto “Intervenção”, a distraída leitora desconfiaria que, assediado por senhorinhas patuscas, Bolsonarodáctilo vinha aí. Porque a via-crúcis do Salvador foi ladrilhada por liberais ilibados, bacharéis de bigode branco, sultões dos púlpitos, vigários da Bolsa, gigolôs ilustres.

Do alto de escritórios espelhados na Faria Lima, a galera da alta finança clamava: queremos Temer! Como as classes conversadoras matraquearam à náusea que era preciso “preservar as instituições”, Temer tivemos. Tales Ab’Sáber deu então uma guinada no projeto inicial.

Bruna Barros/Folhapress

Dedicou-se a um livro escrito no calor da hora: “Michel Temer e o Fascismo Comum” (Hedra, 190 págs.). Ele é desigual —tem artigos, ensaios e um diário— e incisivo. As primeiras frases acerca do datilógrafo cata-milho que se imagina pianista virtuoso são de uma aversão agoniada.

“Temer faz parte da estirpe dos homens medíocres do poder brasileiro. Nada nele é especial, fascinante ou criativo. Nada nele nunca surpreende, brilha ou dá esperança. Seu mundo é o dos gabinetes e dos acordos de bastidores. Não há nada a sonhar e nada a esperar a seu respeito.”

Temer é Wakefield, o notável personagem de Hawthorne. É um homem letárgico, um tíbio vaidoso e de coração gélido cuja mente se ocupa de meditações longas e lentas que não chegam a conclusão alguma. Infenso à imaginação, nunca foi assaltado por uma fantasia, um desejo de mudar.

Ele pertence à confraria dos anódinos que, nota Ab’Sáber, “vive a política na interioridade privada dos interesses, nos lobbies dos hotéis, nas antessalas dos palácios, nas conversas a portas fechadas, nos restaurantes e clubes, expandindo o poder como o bom negócio que ele é, para os de sempre”.

Chegou à Presidência por ser o epítome da mediocridade matreira, por selar acordos nos quais as partes em litígio lucram. Ou, segundo “Fascismo Comum”, por ser o dono “das regras do jogo, mas não da bola, o gerente e avalista da negociação, o árbitro dos equilíbrios e repasses do poder”.

A partir das reflexões de Ab’Sáber é possível aprofundar a interpretação da vida e obra de Temer. O psicanalista se refere às suas imagens famosas: a de mordomo de filmes de terror, criada por Antonio Carlos Magalhães, e a de Vampirão Neoliberalista, do desfile da Tuiuti.

Em preto e branco, os filmes se passam em palácios de arrepiar. O mordomo espectral recebe os convidados. Propicia o rendez-vous no qual os protagonistas se acertam. Leva e trás o que precisam e, patrimonialista de boa cepa, nunca se esquece de pegar o tão merecido óbolo.

O Vampirão pulou do Planalto para o carro alegórico. Ao atingir a glória, caiu na boca do povo e no ridículo. Porque o seu reino é o das sombras, das transações secretas no escritório no Alto de Pinheiros, com seu coronel da PM trazendo cafezinho. É ali que recebe transfusões.

Ou então usa o subsolo do Palácio do Jaburu, onde teve seu infausto tête-à-tête com um salsicheiro trilhardário. Disse ali a sua frase peremptória, aquela que o define e o perseguirá como um fantasma até o fim de seus dias: “Tem que manter isso aí, viu?”.

Não se tratava apenas de providenciar a nutrição de Eduardo Cunha, recolhido a uma cela. Era preciso manter a máquina que injeta plasma no organismo dos lobistas de si mesmos. É por meio da máquina que eles mantêm suas prerrogativas: carrões pretos, garçons de luvas brancas, malas marrons.

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