Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Mario Sergio Conti

Tártaros e bárbaros à espreita

Em fino ensaio, Paulo Arantes situa Antonio Candido no novo tempo do mundo

Ilustração de Bruna Barros para Mario Sérgio Conti de 3.nov.2018.
Bruna Barros

Com 38 ensaios, escritos por intelectuais daqui e do exterior, “Antônio Candido 100 Anos” (editora 34, 496 págs.) é terno e surpreendente. Com afeto, mas sem derramamentos, alunos, discípulos e colegas contam o que aprenderam com o grande crítico.

Há reminiscências cálidas; louvores ao jeito reto de ser e ensinar; sínteses de sua trajetória; avaliações do percurso político; manuscritos das dedicatórias que lhe foram endereçadas por Mario e Oswald de Andrade, Bandeira, Drummond e Graciliano. A linda foto da capa condensa o livro.

A surpresa fica por conta de um depoimento inédito, feito por Antonio Candido em 2016. Em meia dúzia de páginas de puro deleite, reencontra-se a sua cultura, a objetividade refinada, a clareza de expressão.

Ele considera que era melhor falando do que escrevendo. Nem leva em conta o óbvio, que era um escritor de mão cheia. Explica que dar aulas fez com que afiasse o ofício de crítico literário. Simples assim.

É convincente. Mas deixa na sombra o quanto estudou e trabalhou —o tanto que tateou e pensou— até se dar por satisfeito. Parcialmente satisfeito: “Tenho pouca capacidade de abstração, dependo mais da intuição e da sensibilidade”.

A contragosto, “100 Anos” está envolto em melancolia: vem a lume bem na hora em que se apaga mais uma tentativa do Brasil enfim se formar. Milhões continuam a viver da boca para fora, espoliados à bruta por uma minoria cúpida. A visão generosa que norteou Candido, hélas, fracassou.

Na hora escura, o que esperar do futuro? Essa questão tangencia a segunda surpresa do livro: “Educação pela Espera”, de Paulo Arantes. Analista fino e radical da cena brasileira, ele parte de um texto pouco examinado de Candido para situá-lo no novo tempo do mundo.

O texto é “Quatro Esperas”, no qual Candido parafraseia criticamente composições acerca do “mundo de esperas angustiadas, dos atos sem sentido lógico, da surda aspiração à morte”.

A descrição é tão bem construída que dispensa a leitura prévia das peças que lhe dão sustentação: o poema “À Espera dos Bárbaros”, de Constantino Cavafis; um relato de Kafka; e dois romances, “O Deserto dos Tártaros”, de Dino Buzzati, e “O Litoral das Sirtes”, de Julien Gracq.

Escritas na primeira metade do século passado, as obras se demoram em lugares e situações sombrias. Dizem respeito à “expectativa de perigos iminentes, quase sempre com suspeita de catástrofe”. De tão enroscada, a vida não anda.

Bárbaros ameaçam uma civilização exausta. A construção da muralha da China não tem sentido porque não se sabe sequer se há inimigos. A guerra contra os tártaros, que propiciaria heroísmo e redenção, não começa nunca. Em Sirtes, indivíduo e sociedade se fundem numa prudência estagnante.

Arantes sustenta que a meditação de Antonio Candido não é apenas literária. Ela exprime uma “sabedoria da qual faz tempo perdemos até mesmo a noção”. Sabedoria que se adensa numa prosa de acuidade majestosa, que enxerga longe.

Por exemplo: “O sentido da vida de cada um está na capacidade de resistir, de enfrentar o destino sem pensar no testemunho dos outros nem no cenário dos atos, mas no modo de ser; a morte desvenda a natureza do ser e justifica a vida”.

Em vez de buscar motivos metafísicos para a paralisia que perpassa os quatro escritos, ou de desandar para generalizações líricas ou sociológicas, Arantes busca dados subjetivos e objetivos —o real— naquilo que Candido escreve.

Detém-se primeiro num velho ensaio sobre as batalhas de Waterloo e Austerlitz, descritas por Victor Hugo, Tolstói e Stendhal. Em seguida, liga a ficção à experiência concreta de Candido com a guerra —as cartas que o irmão e o cunhado mandavam da Itália, onde lutaram contra o fascismo.

Arte, história e intimidade se entrelaçam. Por meio de uma série de mediações, Arantes arrisca dizer que o entorpecimento, a agressão e a morte não ficaram no século passado. São a norma do presente e prefiguram o futuro. Eis aí novo tempo do mundo, o da catástrofe permanente, individual e social.

Não custa lembrar que “Quatro Esperas” foi publicado em 1990, na aurora encardida do governo Collor. E “Uma Educação pela Espera” sai quando o sol negro raia no céu, talvez um “sinal de vida na sociedade parada” —expressão com a qual Candido encerra seu ensaio.

Paulo Arantes termina seu estudo com um parágrafo singelo, de uma única palavra, posta entre parênteses: “(Continua)”. Não se sabe se o que continuará é o ensaio ou a catástrofe.

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