Com 38 ensaios, escritos por intelectuais daqui e do exterior, “Antônio Candido 100 Anos” (editora 34, 496 págs.) é terno e surpreendente. Com afeto, mas sem derramamentos, alunos, discípulos e colegas contam o que aprenderam com o grande crítico.
Há reminiscências cálidas; louvores ao jeito reto de ser e ensinar; sínteses de sua trajetória; avaliações do percurso político; manuscritos das dedicatórias que lhe foram endereçadas por Mario e Oswald de Andrade, Bandeira, Drummond e Graciliano. A linda foto da capa condensa o livro.
A surpresa fica por conta de um depoimento inédito, feito por Antonio Candido em 2016. Em meia dúzia de páginas de puro deleite, reencontra-se a sua cultura, a objetividade refinada, a clareza de expressão.
Ele considera que era melhor falando do que escrevendo. Nem leva em conta o óbvio, que era um escritor de mão cheia. Explica que dar aulas fez com que afiasse o ofício de crítico literário. Simples assim.
É convincente. Mas deixa na sombra o quanto estudou e trabalhou —o tanto que tateou e pensou— até se dar por satisfeito. Parcialmente satisfeito: “Tenho pouca capacidade de abstração, dependo mais da intuição e da sensibilidade”.
A contragosto, “100 Anos” está envolto em melancolia: vem a lume bem na hora em que se apaga mais uma tentativa do Brasil enfim se formar. Milhões continuam a viver da boca para fora, espoliados à bruta por uma minoria cúpida. A visão generosa que norteou Candido, hélas, fracassou.
Na hora escura, o que esperar do futuro? Essa questão tangencia a segunda surpresa do livro: “Educação pela Espera”, de Paulo Arantes. Analista fino e radical da cena brasileira, ele parte de um texto pouco examinado de Candido para situá-lo no novo tempo do mundo.
O texto é “Quatro Esperas”, no qual Candido parafraseia criticamente composições acerca do “mundo de esperas angustiadas, dos atos sem sentido lógico, da surda aspiração à morte”.
A descrição é tão bem construída que dispensa a leitura prévia das peças que lhe dão sustentação: o poema “À Espera dos Bárbaros”, de Constantino Cavafis; um relato de Kafka; e dois romances, “O Deserto dos Tártaros”, de Dino Buzzati, e “O Litoral das Sirtes”, de Julien Gracq.
Escritas na primeira metade do século passado, as obras se demoram em lugares e situações sombrias. Dizem respeito à “expectativa de perigos iminentes, quase sempre com suspeita de catástrofe”. De tão enroscada, a vida não anda.
Bárbaros ameaçam uma civilização exausta. A construção da muralha da China não tem sentido porque não se sabe sequer se há inimigos. A guerra contra os tártaros, que propiciaria heroísmo e redenção, não começa nunca. Em Sirtes, indivíduo e sociedade se fundem numa prudência estagnante.
Arantes sustenta que a meditação de Antonio Candido não é apenas literária. Ela exprime uma “sabedoria da qual faz tempo perdemos até mesmo a noção”. Sabedoria que se adensa numa prosa de acuidade majestosa, que enxerga longe.
Por exemplo: “O sentido da vida de cada um está na capacidade de resistir, de enfrentar o destino sem pensar no testemunho dos outros nem no cenário dos atos, mas no modo de ser; a morte desvenda a natureza do ser e justifica a vida”.
Em vez de buscar motivos metafísicos para a paralisia que perpassa os quatro escritos, ou de desandar para generalizações líricas ou sociológicas, Arantes busca dados subjetivos e objetivos —o real— naquilo que Candido escreve.
Detém-se primeiro num velho ensaio sobre as batalhas de Waterloo e Austerlitz, descritas por Victor Hugo, Tolstói e Stendhal. Em seguida, liga a ficção à experiência concreta de Candido com a guerra —as cartas que o irmão e o cunhado mandavam da Itália, onde lutaram contra o fascismo.
Arte, história e intimidade se entrelaçam. Por meio de uma série de mediações, Arantes arrisca dizer que o entorpecimento, a agressão e a morte não ficaram no século passado. São a norma do presente e prefiguram o futuro. Eis aí novo tempo do mundo, o da catástrofe permanente, individual e social.
Não custa lembrar que “Quatro Esperas” foi publicado em 1990, na aurora encardida do governo Collor. E “Uma Educação pela Espera” sai quando o sol negro raia no céu, talvez um “sinal de vida na sociedade parada” —expressão com a qual Candido encerra seu ensaio.
Paulo Arantes termina seu estudo com um parágrafo singelo, de uma única palavra, posta entre parênteses: “(Continua)”. Não se sabe se o que continuará é o ensaio ou a catástrofe.
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