Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Ocos que trincam e tragam

A poesia concentrada e cortante de Sylvia Plath na tradução de Augusto de Campos

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Em outubro passado, quando a Galileu Edições publicou "Retrato de Sylvia Plath como Artista", de Augusto de Campos, foi o caso de arquear as sobrancelhas em circunflexos pontiagudos. Há poucos poetas de versos tão adversos quanto o paulistano e a americana.

O brasileiro fez 88 anos agora, em fevereiro. Ele lê, traduz e escreve à noite, e publica no Instagram de dia. Não faz praça de seus feitos —mas recebeu recentemente prêmios na Hungria e no Chile. Segue criando uma obra sem concessões nem confissões.

A americana está encarcerada para sempre num outro fevereiro, o de 1963. Ela vivia em Londres com os filhos, ambos com menos de dois anos. Alugara uma casa, em Fitzroy Road, onde morara o poeta W. B. Yeats. Há 304 anos a Inglaterra não atravessava um inverno tão gélido.

Numa segunda-feira, dia 11, ela pôs Frieda e Nicholas para dormir. Deixou canecas de leite e pedaços de pão na cabeceira. Foi para a cozinha, enfiou a cabeça no forno, abriu o gás, matou-se. Fora abandonada pelo marido, Ted Hughes, também ele poeta. Tinha 30 anos.

Ilustração
Bruna Barros/Folhapress

Um mês antes, ela publicara o romance "A Redoma de Vidro". Assinara-o com pseudônimo —Victoria Lucas— para não melindrar a mãe. Autobiográfico, ele relata seu estágio numa revista feminina, fracassos amorosos, desajuste social e o turbilhão de um colapso nervoso.

A protagonista engole 45 comprimidos de soníferos. É internada e lhe aplicam eletrochoques —que ela compara à execução dos Rosenberg, por espionagem, na cadeira elétrica. Numa América modorrenta e hipócrita, o romance causou.

A virulência de "A Redoma de Vidro" não se equipara à de "Ariel", livro de poemas lançado um mês depois de ela se matar. Se o romance tematiza o desregramento da razão, "Ariel" é a irrazão tornada regra literária —uma poesia bem mais brutal do que bela.

Curto e concentrado, o livro fala de seu pai, "panzer-man" fascista que ela adorava; da mãe obsessiva; da inconstância de Hughes, que a trocou por uma ninfa erótica; de amigos monstruosos; de seu ciúme, desespero, horror.

À intensidade emocional, febril e aflitiva, correspondem um imaginário excêntrico e versos ultracondensados, que ela leva ao limite expressivo. Seus monossílabos assonantes são duros e rudes —pedradas no não-me-toques do leitor posto em sossego.

Foi a artesania, o "molecularismo" e os "minifonemas", que atraíram Augusto de Campos à tradução de Sylvia Plath. A etiqueta de "confessional", diz ele no prefácio, confunde e fragiliza a sua arte, expõe um "preconceito feminista às avessas". Dizer isso é mexer com fogo

Ou seja: é mexer no magma que mistura vida e obra, ideologia e estética. Canonizada, Sylvia Plath virou protomártir feminista —vítima pueril do pérfido Hughes, poeta laureado que lhe deu o popular pé na bunda e lhe manipulou a obra, censurando trechos que o incriminavam.

Junto com as feministas vieram harpias, amazonas, viragos, nikes, fúrias: ao declamar em público, Hughes era apupado por um coro de medusas. Impávido, talvez abúlico, ele foi em frente —mas teve que cruzar o Hades e se haver consigo mesmo.

Casou-se e teve uma filha com a mulher pela qual abandonara Sylvia Plath, Assia Wevill. Viveram seis anos juntos até que, como sua antecessora, ela se suicidou no forno da cozinha. Com a diferença que Assia matou também a filha, Shura, de quatro anos.

Com duas suicidas a lhe pesarem na alma, Hughes foi esquadrinhado pelo mundinho bem-pensante anglo-americano. O mote era Sylvia Plath, tema de estudos e biografias aos borbotões. Mas a sua relação com o marido opressor ocupava a ribalta por inúmeras páginas.

Como escrevia compulsivamente, ela gerou uma linha de montagem editorial. "Ariel" foi "restaurado"; os "Diários" teve versão "integral"; as "Cartas", "edição completa". Afora documentários e filmes —um deles com Daniel Craig (o 007 com pescoço de chofer de caminhão) como Hughes.

E tome escândalo. Suas 1.390 cartas, a 140 pessoas, enchem 1.500 páginas. O segundo volume delas, que também saiu em outubro, traz 16 cartas que enviou a sua psiquiatra. De além-túmulo, dois anos depois dos fatos, no meio do divórcio, ela acusa Hughes de agredi-la e lhe provocar um aborto.

Na contracorrente, o "Retrato de Sylvia Plath como Artista" não chega a ser um livro. É uma plaquete com apenas sete poemas traduzidos e uma tiragem formidável: 50 exemplares. Mas traz o último poema dela, escrito três dias antes do suicídio, "Limites". Ele acaba com o verso: "Seus ocos trincam e tragam".

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